De passagem pela Bahia, filha de Paulo Freire fala sobre educação e barbárie

A também educadora Fátima Freire afirma que muitos que criticam o pai não conhecem a obra dele

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  • Da Redação

Publicado em 18 de setembro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

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Paulo Freire com 1 ano de idade em Recife por Divulgação Itaú Cultural

A professora Fátima Freire honra o sobrenome. Não só porque se tornou uma educadora que forma outros professores, mas também porque segue os ensinamentos do pai à risca. O pernambucano Paulo Freire (1921-1997) completaria 100 anos nesse domingo (19). Declarado patrono da educação brasileira desde 2012, suas ideias têm sido atacadas a ponto de, na última quinta-feira (16), a Justiça Federal do Rio de Janeiro determinar que a União “abstenha-se de praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade do Professor Paulo Freire”. 

Sua luta foi - e ainda é através de suas obras - por uma educação humanizadora e transformadora. Inclui também o fortalecimento da democracia participativa, da ética e da garantia de direitos. São dele as máximas: “Educar é um ato político”, “A educação é um processo de transformação”, “Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” e “Educação e cultura são irmãs gêmeas”. Por conta desse pensamento é que ele vem sendo atacado pelos conservadores.

“A filosofia de Paulo Freire exige uma postura muito generosa diante do educando, de amor. Quando ele diz assim: ninguém sabe mais do que o outro, quer dizer que o que existem são saberes diferentes. E dependendo de como o educador se perceba enquanto detentor do conhecimento, ele não aceita uma definição dessa. Ele pode se sentir diminuído diante do aluno”, teoriza a filha, ao explicar por que o pensamento do pai é combatido por muitos, inclusive educadores. Fátima Freire Dowbor veio à Bahia para uma formação sobre educação transformadora (Foto: Acervo pessoal) A professora Fátima, que é conselheira do Instituto Paulo Freire, veio à Bahia a convite da Secretaria Estadual de Educação, por meio do Instituto Anísio Teixeira (IAT), para uma formação voltada ao corpo pedagógico do IAT nessa sexta-feira (17) e sábado (18). O tema central, claro, é a Educação Transformadora. “A teoria do meu pai sobre educação está ancorada no fazer, na ação e na ação para a transformação”, resume ela, que é autora do livro Quem Educa Marca o Corpo do Outro.

Em sua obra Pedagogia da Autonomia, o filósofo troca em miúdos: “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. [...] Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.

Para marcar o centenário, começa neste sábado (18) a 53ª Ocupação Itaú Cultural, em São Paulo, em homenagem ao pernambucano. Para quem está longe, foi lançado um site em que o visitante poderá ver fotos, textos, documentos, frases, depoimentos, tudo on-line.

Paulo Freire é autor de dezenas de obras, entre as quais Educação Como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido, Educação e Mudança, Conscientização – Teoria e Prática da Libertação, Educação e atualidade brasileira, Por Uma Pedagogia da Pergunta, Pedagogia da Esperança , Professora Sim, Tia Não: Carta a Quem Ousa Ensinar e Alfabetização: Leitura do mundo, leitura da palavra.

Fátima Freire Dowbor é formada em Pedagogia pela PUC de São Paulo, possui graduação em Filosofia pela Universidade de Coimbra, em Línguas Romanas pela Universidade de Varsóvia e em Psicopedagogia pelo Instituto Jaques Rousseau. Já atuou como educadora em diversos países e atualmente presta assessoria pedagógica a diversas instituições, além de integrar o conselho do Instituto Paulo Freire. É autora do livro Quem Educa Marca o Corpo do Outro (editora Cortez, 2017).Confira o bate-papo:

A senhora veio à Bahia para uma formação continuada cujo tema é a Educação Transformadora. Como falar sobre isso para que seja colocado em prática? 

A ideia principal de desenvolver esse conteúdo sobre educação transformadora é justamente discutir com o professor para que ele possa perceber o lugar que ocupa quando ele está no chão da sala de aula. É fundamental que o professor se aproprie do seu saber e da sua prática se ele acredita numa educação emancipatória, para transformar um pouco a vida dos alunos dele. 

Esse olhar para o chão da sala de aula traz muito da filosofia do seu pai, baseada na educação transformadora. Anos depois, ela ainda é fundamental, não? 

Claro. Isso é o que mais incomoda a maioria das pessoas que não acreditam na filosofia da educação que ele postulava. A presença dele tem uma força muito grande porque, em todos esses anos, o pensamento dele volta com muita presença, com muita atualidade. 

A senhora já disse que ele ainda é pouco estudado nas escolas e nas universidades. Por quê? 

Repare... Eu quero crer que muitas dessas pessoas, talvez, não sejam realmente estudiosas, o que deveríamos ser, porque todo educador deveria ser um estudioso. Na verdade, a dificuldade é que ele [Paulo Freire] exige uma postura muito lúdica, muito generosa diante do educando, sabe? Quando ele diz assim: ninguém sabe mais do que o outro, quer dizer que o que existem são saberes diferentes. Dependendo de como o educador se perceba enquanto detentor do conhecimento, ele não aceita uma definição dessa. Ele pode se sentir diminuído diante do aluno. 

Educador e educando precisariam estar no mesmo patamar? 

Depende. No mesmo patamar no sentido de seres humanos amorosos, entende? Mas em patamares diferentes de um ser que ensina o outro. Eu não posso ensinar algo que eu não sei. Para você aprender comigo, eu tenho que saber mais do que você naquele conteúdo específico que estou a ensinar. Mas você não é melhor ou pior do que eu por isso. 

Envolve a questão do amor que também está na base da relação entre educador e educando a partir da filosofia de Paulo Freire, não é? 

Claro que sim, justamente porque todo aquele educador que acredita na educação como um ato de vida, isso é um ato amoroso, no sentido de querer que o outro seja gente, seja mais, e não menos. 

Como podemos explicar o ‘esperançar’ do filósofo? 

É interessante. Não sei se a maioria das pessoas se dá conta de que paizinho escolheu transformar o substantivo esperança no verbo esperançar. Isso está relacionado à sua teoria sobre educação, ancorada no fazer, na ação e na ação para a transformação. 

A senhora já resumiu a obra de Paulo Freire falando que o que está por trás de todo o processo é a educação em favor dos oprimidos. Nesse período de pandemia, no entanto, as desigualdades só se aprofundaram. Nós retrocedemos em um nível até indescritível... 

É, mas muitos de nós, talvez, estejamos colocando a pandemia como um bode expiatório. Todo o despreparo da formação dos professores no chão da sala de aula já existia antes da pandemia, que aumentou essa desigualdade. Por quê? Porque está a exigir um tipo de formação e conhecimento que o professor não tinha. E não tinha porque nunca lhe foi propiciado. Repare bem: há quantos anos se fala na importância dos meios de comunicação, da informática, da tecnologia no processo de educação? Mas nas nossas escolas, nos nossos municípios, não tínhamos isso. É incrível, mas a pandemia só veio realmente jogar um holofote em cima das deficiências. Antes era uma lanterna, agora é um holofote. 

O que se vive hoje, então, é uma consequência da defasagem anterior... 

A defasagem anterior foi aumentada, exacerbada com a pandemia, mas não foi a pandemia que causou toda essa desigualdade social.  

E de que maneira a senhora acha que podemos corrigir esse fosso entre alunos de classes sociais diferentes, com acesso diferenciado aos recursos? 

Até hoje temos problemas enormes de educação e saúde. São opções políticas. Enquanto o nosso governo não der importância à educação e à saúde, o nosso país viverá nesse atraso. É uma barbárie. E não foi a pandemia que trouxe a barbárie. Ela já existia. 

Nesse contexto, o quão são prejudiciais essas frases ditas até pelo ministro da Educação [Milton Ribeiro] recentemente, de que  a universidade deve ser para poucos? 

Por um lado, é até bom que ele diga isso para que as pessoas saibam que espécie de ser humano ele é, vejam a mentalidade curta. Ao mesmo tempo, é fundamental, por isso que nós precisamos de uma educação para a transformação, emancipadora, que o professor não acredite nessas palavras só porque vêm de um ministro da Educação! Um ministro da Educação pode dizer asneiras como essa que ele falou! Ele ocupa um alto posto, mas dependendo da escolha política que está por trás, o alto posto dele é para ele exercer não a diminuição das pessoas! É contra isso que ele tem que lutar. 

O que é imprescindível na filosofia de Paulo Freire para o que estamos vivendo? 

O que eu considero que está mais presente é a tomada de consciência, a leitura da realidade, das forças que estão por trás de toda essa barbárie que estamos vivendo, não uma barbárie no sentido pandêmico, mas uma barbárie de falta de direção, de um país desgovernado e que optou por um tipo de relação fascista. O que fica pra mim de forte do pensamento do meu pai nesse momento, sobretudo no que diz respeito ao campo educacional, é realmente que todos nós somos seres humanos, somos seres amorosos e somos seres desejosos e que ninguém é melhor do que ninguém. Temos que estar juntos. 

Essa valorização do amor e da esperança pode ser ensinada na família e na escola também, né? 

Evidente que sim. 

Começa neste sábado a Ocupação Paulo Freire, em São Paulo, um jeito de colocar novamente o nome de Paulo Freire na roda... 

Claro, é um reconhecimento. Ele tem o reconhecimento internacional, por incrível que possa parecer, quer dizer, incrível não, porque nós somos um povo, nunca entendi por que, que dá mais importância aos que são de fora. Uma tristeza. Enfim, cada povo com sua cultura. Quero terminar destacando toda a enorme gratidão da nossa família diante de tanta homenagem, de tanta solicitação e sobretudo do reconhecimento da presença dele ao longo desses anos todos e a confirmação de que o pensamento dele está aí. Ele está vivo, sobretudo nos educadores. 

Paulo Freire é para sempre. 

É isso aí. Isso aí.

Exposição em homenagem a Freire tem atividades on-line

Até o dia 5 de dezembro, as pessoas que queiram conhecer o mundo de Paulo Freire, educador e filósofo pernambucano que possibilitou a leitura do mundo, poderão dar uma chegada na Avenida Paulista, em São Paulo, no espaço Itaú Cultural, que lança neste sábado (18) a 53ª Ocupação, em homenagem a Freire. Mas, calma, porque o conteúdo estará disponível on-line, e não só a exposição como também encontros sobre a temática da educação.

A Ocupação terá um site que contém uma série de conteúdos e informações adicionais aos que estão no espaço físico, e uma publicação impressa e digital.

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Neste link aqui, os interessados poderão agendar encontros com os educadores do Itaú Cultural (via Zoom), dentro da programação Experiência Virtual. É gratuito, e os encontros de setembro e outubro já estão com as datas definidas. É uma atividade interessante, já que os educadores propõem recortes sobre o que está sendo apresentado presencialmente e mostram fotos, objetos, textos — tudo pela tela do computador, explicadinho.

Por fim, nove encontros tratarão da prática e da filosofia do educador, assim como das releituras de seu pensamento com trabalhos em  áreas da saúde, cultura, feminismo, racismo, agroecologia, música e teatro. Serão as Quartas com Paulo Freire. A curadoria é da educadora e pesquisadora Gleyce Kelly Heitor. Eles ocorrerão de 6 de outubro a 1 de dezembro, sempre às quartas, das 19h às 21h. Toda a programação, com os temas e convidados, está disponível no site da Ocupação, em Encontros. Aproveite. A exposição seguirá até o dia 5 de dezembro.