Decisão de juíza sobre advogado 'morto-vivo' foi um 'arranjo', dizem juristas

Após dar réu vivo como morto, magistrada reverteu a própria sentença

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 28 de novembro de 2018 às 04:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akiin Nassor/Arquivo CORREIO
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A juíza que decidiu que o advogado João Lopes de Oliveira, acusado de fraude em licitação de concurso, não poderia ser punido pelo crime por estar morto não podia reverter a própria sentença. O caso aconteceu em Simões Filho e foi noticiado com exclusividade pelo CORREIO. Após ser informada de que o réu, na verdade, estava vivo, a magistrada fez uma nova sentença. Mas, especialistas ouvidos pela reportagem disseram que a decisão estava transitada em julgado, ou seja, não havia mais recurso ou o prazo já havia terminado.“A partir do momento que uma juíza exaure (esgota) uma sentença, só o Tribunal pode mexer. Se ela volta atrás, isso é um arranjo jurídico, um arremedo”, afirmou ao CORREIO um experiente advogado criminalista, que não quis ser identificado.A sentença que deu o réu como morto foi assinada no dia 16 de julho de 2018 pela juíza Ana Gabriela Duarte Trindade, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Simões Filho. Ela foi feita com base em uma certidão de óbito anexada ao processo em nome de um homônimo - uma pessoa com o mesmo nome do réu, mas com dados diferentes. A certidão foi assinada digitalmente pela servidora do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) Diana Deyse Cardoso de Santana. 

“Morto”, João Lopes de Oliveira teve a punibilidade extinta no processo a que o filho dele, o também advogado João Lopes de Oliveira Júnior, e o empresário Júlio César Souza da Cruz também respondem, após denúncia do Ministério Público da Bahia (MP-BA), das promotoras Alice Alessandra Ataíde Jácome e Márcia Rabelo Sandes.

A partir de denúncias e de farta documentação, o CORREIO localizou João Lopes de Oliveira bem vivo, trabalhando normalmente na cidade de Alagoinhas, no Nordeste da Bahia, onde mora. Informada do fato pela reportagem, a juíza fez uma nova sentença no dia 22 de novembro - mais de quatro meses depois - em que suspende a decisão anterior.

O problema é que, legalmente, ela não poderia fazer isso. Pelo Código de Processo Penal, uma sentença não pode ser reformada se não couber recurso, como é o caso. 

A sentença da juíza tem apenas duas folhas e informa que a “consonante” certidão de óbito foi “acostada” às folhas 2.665 do processo e diz que o documento está “devidamente autenticado”. Havia incongruências que foram ignoradas. 

Pessoas diferentes Informações contidas na certidão de óbito, registrada no 2º Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais de Feira de Santana, não batem com o processado. Coincidem apenas os nomes completos dele e da mãe: Maria Lopes de Oliveira. O nome do pai, a naturalidade, a idade, o Registro Geral e CPF também não estão de acordo. O morto verdadeiro faleceu em 2011, dois anos antes do processo.

Outro advogado ouvido pelo CORREIO explicou também que, além de não poder reverter uma decisão transitada em julgado, a juíza também deveria ter intimado as partes envolvidas sobre a extinção de punibilidade, o que poderia fazer com que o Ministério Público ficasse ciente da decisão e buscasse possíveis incongruências.

O TJ-BA não respondeu se a juíza comunicou a decisão ao MP-BA, conforme prevê o Artigo 62 do Código de Processo Penal:“No caso de morte do acusado, o juiz somente à vista da certidão de óbito, e depois de ouvido o Ministério Público, declarará extinta a punibilidade”, diz o artigo 62 do Código.O MP-BA também não informou se foi notificado e nem explicou por que não recorreu da decisão em cinco dias, conforme está previsto no Artigo 586 do mesmo código. O atual advogado de João Lopes de Oliveira, Hítalo Rocha, não soube dizer se o cliente foi notificado  na época. Certidão de óbito usada no processo é legítima, mas pertence a outra pessoa com o mesmo nome do réu (Imagem: Reprodução) Defesa contesta Há casos específicos em que a lei permite que processos finalizados sejam revertidos. “Somente através de revisão criminal”, diz outro advogado, que também preferiu não ter o nome divulgado. Ele explica que a revisão não pode prejudicar o réu e sim ser proposta por ele se forem descobertas novas provas de inocência ou se a sentença se fundar em documentos falsos.

“Não é o caso. O réu foi beneficiado na sentença”, diz. Por isso, o advogado que defende João Lopes de Oliveira disse que pretende demonstrar que a nova decisão da juíza é tecnicamente ilegal.“Essa tem que ser uma discussão técnica, sem discutir o mérito. Não há a possibilidade de reaver o caso a não ser por revisão criminal, mas esse é um recurso dado ao condenado. Ela não pode reformar uma decisão para prejudicar o réu”, afirmou Hítalo Rocha, que procurou o CORREIO.Segundo ele, seu cliente não juntou ou pediu para juntar ao processo qualquer certidão de óbito. Ela teria sido extraída do sistema Smartjud, do TJ-BA.

Filhos e cunhada de advogado geriam empresas de esquema O esquema envolvendo o advogado morto-vivo e o filho, além do empresário Julio César Souza da Cruz, foi denunciado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) e deu origem a uma ação penal em 2013. A denúncia diz que a empresa de concursos de João Lopes de Oliveira está envolvida em uma série de fraudes a licitações nos estados da Bahia e Sergipe.

De acordo com a peça do MP-BA, inicialmente, as empresas falsificavam certidões negativas de débitos relativos às contribuições previdenciárias. O objetivo era, mesmo sem condições legais, participar das licitações. Depois, elas frustravam o caráter competitivo.

Além das empresas CBI e Cibrascon, mais três (Seprod, Asseplac e Ibrascon) participavam do esquema. Apesar dos sócios diferentes, afirma a denúncia, todas eram ligadas ao advogado João Lopes de Oliveira, que seria o “gerenciador de todo o esquema”. O advogado dele, Hítalo Rocha, diz que essa foi uma suposição. “Essa foi uma suposição levantada à época. Crime de fraude de licitação não é suposição”, ressalta.

Entre os sócios das empresas estão os filhos de João Lopes de Oliveira - João Lopes de Oliveira Júnior, Júlio Tácio Andrade Lopes de Oliveira e João Henrique Mutis Lopes de Oliveira -, e uma cunhada dele, Maria Jussara Souza de Andrade. Duas das empresas têm sede na residência do filho Júlio Tácio e outra funciona no escritório do próprio João Lopes de Oliveira.

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O defensor do advogado João Lopes de Oliveira afirma que, à exceção de Simões Filho, que mantém o processo por fraude em andamento, seu cliente foi absolvido em todos os outros processos. Hítalo Rocha cita as cidades de Nova Soure e Cipó, na Bahia, além de General Mainard, Carmópolis e Areia Branca, em Sergipe, como locais em que seu cliente teve o processo arquivado. 

No caso de Simões Filho, o processo culminou com a anulação da licitação e dos contratos. Segundo o advogado, nas cidades em que João Lopes de Oliveira foi absolvido foi constatado que as falsificações foram realizadas por empresas do outro réu. A CBI seria uma delas.“A empresa do seu João foi incluída no objeto da investigação em função de uma falsidade documental não da empresa dele, mas de outro réu. Esse sim teria falsificado os documentos”, diz o advogado dele.De qualquer forma, o processo de Simões Filho continua tramitando, apesar de, desde 2013 ainda não ter ocorrido qualquer audiência. “Ainda resta esse processo de Simões Filho e, claro, todas as varas devem ser respeitadas separadamente. Mas, meu cliente é uma pessoa íntegra e sua inocência vai ser novamente comprovada”, afirma Rocha.