Dentro de casa, jogados no mundo: só metade dos pais monitora o que os filhos acessam

Confira relatos e ‘descobertas’ feitas pelos pequenos nas redes e entenda os riscos da falta de acompanhamento parental na internet

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  • Priscila Natividade

Publicado em 10 de outubro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração: Morgana Miranda/Estúdio Grida

“Guilherme não queria nem saber mais de jogar bola, ele agora quer ser jogador de Free Fire”. Acredita que até o ídolo mudou? Deixou de ser Neymar para ser Nobru, o youtuber sensação referência desse jogo online de tiro que acumula só no Google Play mais de 65 milhões de downloads. “Meu filho ficou reativo, impaciente, bruto, não comia nos horários, perdeu totalmente o interesse pelo esporte que sempre praticou e pelos estudos”, desabafa a assessora executiva e mãe de Guilherme, de 10 anos, Luciana Nascimento.

O Free Fire é indicado para maiores de 12 anos. Na descrição do jogo, que é gratuito e disponibilizado pela Garena International, consta a presença de conteúdo de  violência, além de temas relacionados a terror e  medo. Fundada em Cingapura,  a Garena acumulou de receita R$ 15 bilhões no último ano. “Eu já estava exausta de reclamar, brigar, tomar celular, dar castigo. O maior desafio é ensinar o que é limite”, completa Luciana, que após muita conversa com o filho conseguiu estabelecer um acordo.

A exposição em maior grau nas redes durante a pandemia acendeu o alerta vermelho. Preocupa mais ainda o fato de que só metade dos pais e mães acompanha, efetivamente, o que seus filhos estão fazendo na Internet. O dado faz parte da Pesquisa Tic Kids Online Brasil feita pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Ao todo, foram ouvidos 2.954 crianças e adolescentes e 2.954 pais em todos os estados do país, inclusive a Bahia,  entre os meses de outubro de 2019 e março de 2020.

A pesquisa mostra que 22% das crianças e adolescentes consumiram algum tipo de conteúdo com cenas de violência. Outro número que chama atenção é que 15% viram na Internet imagem ou vídeo de conteúdo sexual. Além disso, 24% dos meninos e 31% das meninas já foram tratados de forma ofensiva. As meninas, na maior parte dos casos (33%), sofreram discriminação pela cor ou raça, assim como os meninos (20%). Em seguida, pela aparência física, 26% delas e 15% deles.

Efeitos  “O que a gente tem visto, sobretudo na pandemia, são crianças com traço depressivo e transtorno de ansiedade devido à essa exposição sem controle e sem mediação. Muitos pais têm medo de deixar um filho atravessar a rua para ir sozinho até a padaria. Porém manter horas  e horas na tela, sem monitoramento, é muito mais danoso”, analisa a psicanalista, orientadora educacional e educadora parental,  Larissa Machado (@lari_machado).

Para a especialista não é a Internet que é a vilã, mas a negligência parental. É preciso sim, definir tempo, conteúdo e falar sobre todos os perigos. “Sabemos que os pais estão sobrecarregados, mas é fundamental ter presença, diálogo e limite. Se eles ficam ausentes, a referência se torna as redes e isso vira um caos. É importante defender que as plataformas estão aí e a tecnologia vai ficar. Os pais que não têm muita informação sobre tecnologia devem  buscá-la. Isso se encontra hoje muito fácil. Não é proibir o uso, mas fiscalizar”, argumenta. 

Quase 80% dos domicílios contam com acesso à internet e 76% das crianças e adolescentes usam a rede mundial de computadores  mais de uma vez por dia, conforme apontam ainda os dados da Tic Kids Online. Larissa Machado acrescenta que, na hora de definir as condições de uso, os pais entrem em consenso. “Se isso não for possível, que o mais coerente não abra mão das regras e seja essa a referência, diferente do que não deu limite”. 

Neuropediatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Rita Lucena reconhece que as crianças estão sendo inseridas de maneira cada vez mais precoce nas redes e estimuladas a existir nesse universo virtual. “É a síndrome de FOMO, da sigla em inglês Fear of Missing Out, ou ‘o medo de ficar de fora’. O medo de perder as novidades ou de não se fazer presente implica na contínua necessidade de conexão. A faixa de uso deve estar dentro do aceitável, junto com o estímulo por parte dos pais de experiências sociointeracionais reais”, destaca.

Caminhos Para se ter um perfil em redes sociais como o Tik Tok, Facebook, Instagram e o Youtube, por exemplo, a idade mínima é de 13 anos. A barreira, no entanto, não impediu que os filhos de Letícia* (Lara, de 6 anos, João*, de 7 e Miguel*, de 12 anos) pesquisem por vídeos no Youtube sobre ‘como namorar’, além dos de terror. 

“O ‘boom’ mesmo foi decorrente da quantidade de vídeos e de coisas que eles passaram a assistir por estarem 24 horas em casa. Eles não brincam de casinha como eu brincava. Hoje, minha filha constrói uma casa dentro do jogo e ali ela convida o irmão para entrar e brincar com ela. Só que aí, nessa casa dela, entram crianças que a gente não conhece”.

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Para a psicóloga, doutora em psicologia e criadora do perfil @infanciaeparentalidade, Carol Lopes, os pais não podem permitir o uso livre e amplo da Internet, por mais que a rede tenha também suas vantagens. “A Internet foi fundamental para o ensino remoto, aproximar pessoas no isolamento, e tem muita coisa bacana disponível. O caminho é definir  regras, conversar e orientar porque elas são necessárias”.

A abordagem sobre todos os perigos não pode ser deixada de lado, como complementa o diretor do Dfndr lab, laboratório especializado em segurança digital da PSafe, Emilio Simoni. A empresa é especializada em aplicativos de proteção na Internet. “Peça que seus filhos nunca passem informações pessoais, ainda que haja a promessa de um benefício. Fale abertamente sobre sites falsos e pessoas mal-intencionadas que podem chegar até eles”, completa. 

*Nomes fictícios, já que as personagens pediram para que não fossem identificadas na reportagem 

CONFIRA ALGUNS RELATOS DE PAIS E AS 'DESCOBERTAS' DOS PEQUENOS NAS REDES

1. ‘Ele invadiu o próprio computador de casa’

No início da pandemia, meu filho começou a se interessar por hackers e a cultura da exposição do grupo 'Anonymous'. Ele foi passar o fim de semana com minha mãe e meu irmão me alertou que meu filho estava acessando a deepweb (área da Internet com conteúdos anônimos ou ilegais).

Decidi esperar ele voltar para conversar. Porém, nesse meio tempo, estava em uma reunião online e alguém começou a mexer no meu computador. Tenho uma pessoa de  TI que trabalha para mim à distância, liguei para ela na mesma hora. O computador foi invadido. Tive que fazer vários procedimentos de segurança, porque ele foi atacado por vários tipos de vírus. Meu TI disse: olha o celular do seu filho porque ele deve ter instalado o Tor (aplicativo para quem não quer ser visto na Internet). Ou seja, ele baixou um navegador específico para acessar a deepweb e marcou a segurança de todos os computadores da casa. O acesso já era controlado, depois disso ficou maior. O desafio é conciliar tantas demandas e promover o interesse dele por outras atividades. (Ana* é mãe de Felipe*, 10 anos)

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2. ‘Nossa, eu tremia. Foi por pouco’

Minha filha fica entre cinco a seis horas na Internet durante a pandemia. Recentemente, tomei um susto com jogo The Sims. Ela estava conversando com os bonequinhos achando que eram apenas bonequinhos, sem malícia, enquanto um meliante estava indagando a vida dela completamente: onde morava, estudava, com quem ficava em casa e ela contava tudo como se fosse um tio ou um amigo.

Disse que ficava com a babá, informou o condomínio que morava, onde o pai trabalhava, o horário que a babá saía daqui e a que eu chegava em casa. Quando eu peguei o computador e perguntei a ela quem era, ela me disse: ‘ué, ninguém mamãe. É o jogo que a gente conversa com os bonequinhos’. Daí fui verificar as conversas. Nossa, eu tremia. Foi por pouco. Expliquei a Luiza* toda situação, que existiam pessoas maldosas do outro lado que poderiam machucar ela. Minha filha ficou muito assustada, chorou muito  e não quis mais jogar esse jogo. É difícil limitar o uso das redes, sobretudo, nesse momento. Está muito complicado pela ociosidade que as crianças ficam. Só resta recorrer a jogos e ao YouTube. (Eliana* é mãe de Luiza*, 10 anos)

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3. ‘João* sabia o que era uma AR-15’

Meus filhos chegam a ficar seis, oito horas na Internet. Antes da pandemia, instalei, inclusive, um aplicativo que restringia o uso do celular. Também controlava os jogos.  Só que a gente teve que desinstalar, porque, infelizmente, as crianças não sabem lidar com o tédio ou o ‘não ter nada para fazer’. E isso acabou me causando um problema.  Meu filho de 7 anos instalou um jogo que é a febre do momento, o Free Fire. Eu acabei deixando sem saber do que se tratava e quando eu vi, proibi e desinstalei.  O que mais me assustou foi a questão das armas. Eles falam os nomes das armas, o tipo de munição e os jogadores vão executando as pessoas. Os meninos se tornam especialistas em armas. Imagine: uma criança especialista em armas? João* sabia o que era uma AR-15. E aí vieram crises e crises de choro. Começou a ter insônia, roer unhas, ansiedade, medo e eu o levei para fazer acompanhamento com psicólogo por conta disso.  O acesso  às redes está muito fácil. A gente tem que ficar muito vigilante sempre.  (Letícia* é mãe de Lara, João* e Miguel*, de 6, 7 e 12 anos, respectivamente)

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4. ‘O ídolo deixou de ser Neymar e passou a ser Nobru’

Guilherme fica de sete a nove horas na Internet. Com o uso potencializado pela pandemia, eu passei por algumas situações difíceis, a ponto dele usar meu cartão de crédito, sem minha autorização, para fazer compras na loja virtual que vende utensílios para o jogo Free Fire. Quando a fatura do cartão chegou, tinha R$ 97.

Para o boneco dele no jogo ficar ‘estiloso’, alguém tinha que pagar essa conta e quem pagou fui eu. Ele pediu um milhão de desculpas e disse que não ia acontecer mais. Só que eu já estava exausta. Guilherme ficava sem comer, sem tomar banho, só falava nesse jogo, sem prestar atenção na aula. Entrava dia e noite e ele jogando.

E eu já não aguentava mais reclamar, brigar, tomar celular, dar castigo. Tive que ligar para o pai dele e pedir ajuda porque já não sabia o que fazer. O ídolo dele deixou de ser Neymar para ser Nobru, que é ‘o cara’ do Free Fire. Foi necessário acompanhamento diário, o jogo de troca, a proibição do uso por um determinado tempo até partirmos para o acordo. Ele pode jogar, desde que leia um livro no mesmo tempo. Ou seja, se ficou três horas jogando, tem que ler um livro pelo mesmo período de tempo: três horas. Com isso já consegui que ele lesse O Pequeno Príncipe e Cúmplices de um Resgate. (Luciana Nascimento, assessora executiva é mãe de Guilherme, 10 anos)

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5. ‘É quase uma missão impossível tirar o foco da tela’

Meu filho começou a jogar online pelo Xbox. Um certo dia, eu estava bem ocupada, mas fiquei ouvindo a conversa durante um jogo e vi que se tratava de pessoas mais velhas. Observei o interesse nas perguntas sobre sua idade, onde morava e meu filho respondendo que ele não poderia falar sobre a vida dele. Gabriel não percebeu muito sobre o que se tratava e continuou na dele, jogando. Meu esposo tentou proibir o jogo. Já eu preferi explicar o que acontece quando se joga online e o que se tem por trás da tela. Precisamos escutar nossos filhos e não apenas impor a eles algo sem explicar. Busquei outras alternativas para diminuir o tempo na Internet: aqui lemos livros, andamos de bicicleta, caminhamos com o cachorro, mesmo sabendo que é quase uma missão impossível tirar o foco da tela. (Thaís Riccio Gottschall é psicóloga  e mãe de Gabriel, 8 anos)