Depois da maior seca da história, mulheres reinventam Sertão durante a pandemia

Apoiadas por projeto da ONU, considerado o melhor do mundo, elas criam rede colaborativa, doam máscaras e se reinventam em meio a mais uma crise

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  • Fernanda Santana

Publicado em 13 de junho de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Manuela Cavadas/Arquivo Pró-Semiárido

Numa das oito casas sem reboco da Lagoa do Boi, área rural de Várzea do Curral, distrito de Queimadas, oito mulheres vendem hortaliças plantadas por elas e vizinhos. A venda passou a ser a única alternativa, durante a pandemia da covid-19 e a proibição de algumas feiras livres, de movimentar a economia local. Nem bem atravessaram a maior seca do século, veio um novo abalo. As mulheres têm tido destaque na empreitada de, outra vez, erguer o Sertão.  

A Lagoa do Boi tem 40 moradores, distribuídos em oito casas. O local faz parte das 32 cidades com os menores Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para considerar a qualidade de vida a partir das variáveis de renda, educação e saúde - da Bahia. Abaixo de 0,5, o IDH é baixo. Entre 0,5 e 0,79, é médio; de 0.8 a 0,89, alto; e, acima disso, muito alto.

Os municípios integram, gradativamente, desde 2014, o Projeto Pró-Semiárido, subsidiado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), da Organização das Nações Unidades (ONU), numa parceria com o Governo do Estado - U$$ 45  milhões de dólares do Fida e U$$ 50 milhões de dólares do estado da Bahia, num total equivalente a R$ 350 milhões. Esses locais recebem apoio financeiro, técnico e social. Já são 62 mil famílias impactadas - a meta são 70 mil. “A perspectiva é que superada a crise hídrica, e agora de saúde, o sertão supere também a recessão econômica esperada. O semiárido sempre transitou de uma crise para outra. Agora, com novas perspectivas”, avalia Hardi Vieira,  oficial de Programas do Fida. O Pró-Semiárido foi considerado, em janeiro, entre 231 projetos do Fida, o melhor do mundo. A iniciativa dá protagonismo a jovens líderes, mulheres e quilombolas, e apoia o pequeno produtor. Ao longo dos últimos seis anos, foram 1.450 cisternas construídas em regiões das 32 cidades para garantir que a água chegue à população.

O Fida investiu R$ 217 milhões para compra de alimento e outros insumos para apoiar territórios nos 11 estados onde têm projetos, durante a pandemia. Veio em boa hora. Desde abril, 54% dos 2.271 agricultores baianos ouviidos afirmaram que a renda diminuiu até R$ 100 por semana.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda mensal dos 278 municípios da fatia baiana do Sertão era de R$ 268 mensais, em 2010 - ou seja, quatro vezes menos que um salário mínimo, R$ 1.045. Desde a chegada do Pró-Semiário, 70% das pessoas dizem que a renda está maior. 

Todas por todos 

Em Lagoa do Boi, não há casos notificados de coronavírus, mas na vizinha Queimadas, a 12 quilômetros de distância, são 21. Abriram, então, um Hortifruti, batizado de “Prosperando”, onde os moradores podem vender seus produtos e abastecer a comunidade sem se expor ao vírus em viagens. Os produtos são comercializados somente entre os moradores do local. Sete das oito mulheres que criaram o HortiFruti Prosperando com produtos comercializados na venda - atrás delas, pintada de branco (Foto: Acervo Pessoal) Elas já recebiam suporte técnico do Pró-Semiárido e forneciam merenda escolar e vendiam sequilhos. Cada território dos 32 municípios recebe assistência contínua. São mais de 300 técnicos na Bahia.“A gente ficou triste. Pensamos: ‘Agora vai fazer como?’”, lembra Joelma Silva, 44 anos, uma das idealizadoras da venda. Os vizinhos, e elas próprias, passaram a retirar das roças as frutas e verduras que seriam perdidas, fora o consumo próprio. Todos são remunerados semanalmente, conforme as vendas. Cada venda é embalada numa sacola de pano costurada por outra integrante do grupo. Quem não pode pagar pelos R$ 15 da bolsa, leva emprestada. Dona Maria Helena Santos Silva, 65, é a costureira e sócia. Na comunidade, vestiu até noivas.

Agora, costura máscaras para proteção contra o coronavírus. A unidade custa R$ 3. De uma em uma, veio o incremento na renda dela que, desde a infância trabalha. Os 11 irmãos a acompanhavam. “Dá orgulho, todo mundo vem aqui me procurar e também ajuda a mim e meu marido”, conta. 

Fora da sombra do machismo

Às mulheres sertanejas, sempre coube um papel duplo: o de labuta na terra e de afazeres domésticos. O patriarcado tradicionalmente tenta ofuscar o primeiro na sombra do segundo.“O que a gente vê é que essas mulheres têm um papel importantíssimo, não só secundário. As mulheres cuidaram de casa e ainda precisavam cuidar da terra”, diz Elizabeth Siqueira, assessora de gênero do Pró-Semiárido.O projeto estimula discussões sobre gênero, feminismo e oferece cursos para as mulheres. Na pandemia, Elizabeth acredita que a solidariedade tenha aflorado ainda mais. “Essas mulheres têm se fortalecido fazendo isso. Quando uma mulher faz, todas se fortalecem”, completa. 

Na comunidade quilombola de Malhadinha de Dentro, distrito de Jacobina, Adelânia Ferreira, 24, agricultora e agente comunitária rural (ACR), começou a bater de porta em porta para pedir doação de alimentos. No local, moram 118 famílias. O território é apoiado pelo Pró-Semiárido, mas, com o avanço da pandemia, e proibição de algumas feiras livres, frutas e verduras não tinham onde ser vendidas. “Vi que tinha que fazer alguma coisa”, conta. Agricultora e agente comunitária rural, Adelânia sai de porta em porta em busca de suprimentos para vizinhos (Foto: Acervo Pessoal) Um dia, quando terminava as doações, entrou na casa de uma vizinha, que tem dois filhos, e cujo marido não pode trabalhar por problemas de saúde. O caçula chorou ao ver os quilos de alimentos doados. A mãe se emocionou. “Uma mulher trabalhando na comunidade fortalece as outras”, opina. Antes dos primeiros encontros com mulheres, incentivados pelo Pró-Semiárido, ela, como a maioria das amigas, convivia com o machismo do marido dentro de casa.

O projeto remunera os ACR’s, como ela, em um salário mínimo. Dos 86 agentes, 44 são mulheres - 51%. Hoje, Adelânia não pensa duas vezes para responder: “Com certeza sou feminista”. A renda dela é fundamental para manter a família - marido, três filhos e dois enteados.

Lucrando e doando 

Em Salina, área rural do distrito de Malhada da Areia, em Juazeiro, a distância de uma casa para outra chega a seis quilômetros. O isolamento social, de certa forma, já era uma realidade. Mas, como precisam sair da região para ter acesso, por exemplo, a serviços de saúde, os moradores começaram a se expor ao vírus. 

Um grupo de seis costureiras passou a costurar e distribuir máscaras para os vizinhos. Elas já faziam parte do grupo de 120 pessoas beneficiadas pelo projeto naquela área. As máquinas e outros equipamentos foram fornecidos pelo Fida. Hoje, cada uma delas trabalha de casa.“Mudou tudo, mas precisamos fazer algo pra ajudar”, contou Monique Maiara Silva, 32, agricultora e artesã que viu a vida mudar.Ganha quase um salário mínimo por mês e, aos poucos, se transformou na principal provedora da casa, onde mora com o pai e a filha. As mulheres foram selecionadas num edital do Governo do Estado para produzir máscaras que serão doadas. Monique costura máscaras para doar para vizinhança (Foto: Acervo Pessoal) Tudo que é produzido pelas mulheres atendidas pelo Pró-semiárido é anotado na chamada caderneta agroecológica, que monitora a produção delas e estimula a igualdade de gênero. As mulheres escrevem e monetizam o que colhem, vendem e emprestam para ter consciência da sua contribuição para a família e a comunidade. 

Na comunidade de Canavieira, distrito de Senhor do Bonfim, mãe e filha têm sido responsáveis pelo sustento dos 13 moradores da casa - três deles sem conseguir emprego, mesmo nas roças, durante a pandemia. As duas, Patrícia Vieira, 42, e Regina, 22, vendem beijus e massa de tapioca. A cozinha foi reformada pelo Pró-Semiárido. 

O lucro, até abril, chegava aos R$ 500, para surpresa da família, com as mudanças. Agora, elas remanejaram o negócio e têm vendido os produtos por delivery - com apoio gráfico de um técnico. O marido de Patrícia, com problema cardíaco, não pode mais trabalhar na roça."Tem gente que quando me vê trabalhando, vem falar: ‘É macho fêmea’", diz.  Enquanto alguns vizinhos se atravem a desdenhar, Patrícia e Regina, como milhares de mulheres sertanejas, promovem uma revolução. As mais velhas enxergam o passado como página virada e, as mais novas tentam contar, palavra por palavra, uma nova história - com filhas, mães e avós fora da somba do machismo.