Dez grandes sambas-enredos sobre a Bahia ou baianos, incluindo quatro campeões
Por um bom tempo, sambistas cariocas sustentavam que falar da Bahia não dava campeonato, como lembra o jornalista João Paulo Gondim; confira a curadoria
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Da Redação
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Carioca de nascença e crescença, baiano por destino e benquerença, o jornalista João Paulo Gondim é o mais entusiasmado admirador e entendedor de escolas de samba que se tem notícia. Toda vez que sento à mesa do bar com o xará, pra esvaziar umas ampolas, sua seleção randômica de assuntos sempre resvala em Flamengo, cinema (tema do qual é especializado e por anos a fio escreveu sobre o assunto) e Carnaval carioca.
Sobre o Fla, nunca deixo a conversa desenrolar muito (pois não torço), mas costumo abrir parêntese para relembrar da versão do hino que Jorge Ben gravou em 72: fantástica! Sobre cinema, o bate-papo já desenvolve melhor. Lembro de umas coisas legais que já assisti, anoto mentalmente outras que nunca vi, nem comi ou ouvi falar, e JP é sempre bastante didático e simpático com os neófitos em Godard, por exemplo.
Mas quando chega em escola de samba, como não há por aqui conteúdo suficiente pra papear nada, a saída é ouvir ou perguntar. Não me pergunte como, mas JP (baiano e carioca = baioca) sabe de cór centenas de sambas-enredos (e se houvesse milhares, também saberia), com toda a ficha catalográfica que um figurino nota 10 manda.
Bem antes do Carnaval, tinha me mandado uma nota mental que só reli nos últimos dias: “pedir a João Paulo uma lista com os 10 maiores sambas-enredos cariocas que tiveram como tema a Bahia ou os baianos”.
Achei que tinha lido em cima da hora, mas meu amigo, em boa hora, aceitou de bom grado. “Eis aí a minha singela listinha. Não se trata dos dez melhores sambas sobre a Bahia porque acho que seria difícil definir critérios para tal classificação. Pensei apenas em listar dez sambas sobre o assunto que gostaria que o leitor conhecesse! Se eu fizer ano que vem, a lista talvez seja outra”, explicou no prefácio.
Na listinha, aliás, não consta o 18º título da Estação Primeira de Mangueira com o enredo ‘Maria Bethânia - A Menina dos Olhos de Oyá’, em 2016. Não entrou, mas tá na conta para o título desta coluna.
Outros três troféus que aludem a Bahia vão abaixo e eu torço que você veja, tanto quanto torço este ano para que Joãozinho da Gomeia, tema da Grande Rio, e as Ganhadeiras de Itapuã, tema da Viradouro, tragam mais um Carnaval para a Estação Primeira do Brasil.
***Escola: SalgueiroAno: 1969Posição: CampeãTítulo: Bahia de todos os deusesComentários/análise: Este samba, de autoria da dupla Bala e Manuel Rosa, embalou o primeiro título de uma escola cujo tema era a Bahia. Até então havia o tabu de que falar do estado não dava campeonato. O próprio Salgueiro, em 1954, já havia malogrado na avenida com o enredo “Romaria à Bahia”. Interpretada na pista por Elza Soares, a obra salgueirense de 1969 notabilizou-se por um estilo mais direto e despretensioso de samba.
Letra do samba:
Bahia, os meus olhos estão brilhando,
Meu coração palpitando
De tanta felicidade.
És a rainha da beleza universal,
Minha querida Bahia,
Muito antes do Império
Foste a primeira capital
Preto Velho Benedito já dizia
Felicidade também mora na Bahia,
Tua história, tua glória
Teu nome é tradição,
Bahia do velho mercado
Subida da Conceição.
És tão rica em minerais,
Tens cacau, tens carnaúba,
Famoso jacarandá,
Terra abençoada pelos deuses,
E o petróleo a jorrar
Nega baiana,
Tabuleiro de quindim,
Todo dia ela está
Na igreja do Bonfim, oi
Na ladeira tem, tem capoeira,
Zum, zum, zum,
Zum, zum, zum,
Capoeira mata um!
***Escola: ImperatrizAno: 1980Posição: Campeã Título: O que é que a Bahia temComentários/análise: Cientes de que a escola se apresentaria sob os raios do sol, pois seria a última a desfilar naquele ano, os compositores Darcy do Nascimento e Dominguinhos do Estácio escreveram versos que, na bonita abertura do samba, comparavam o desfile com a luz do dia. Não era a primeira vez que a Imperatriz falava da Bahia — em 1968, já homenageara o estado —, mas o melodioso samba de 1980 foi a trilha do primeiro campeonato conquistado pela escola no grupo principal. Um dos destaques da letra é o emprego do “lalaiá”, já começando a cair em desuso naquela época.
Letra do samba:
Reluzente como a luz do dia
Bela e formosa como as ondas do mar
Encantadora e feliz
Chega a Imperatriz
Fazendo o povo vibrar
Ê Bahia
Vou cantá-la nos meus versos (vou cantar)
Teu passado glorioso
Teu presente já famoso
E o futuro Deus dirá
Pega na barra da saia
Vamos rodar
Lá, laiá, lá, laiá, lá, laiá
Lá, laiá, lá, laiá, laiá
(Ê Bahia...)
Bahia terra da magia
Da feitiçaria e do candomblé
Caô, meu pai Caô
Caô, meu pai Xangô (bis)
Que coisa linda ver
O ritual do lava-pés
A lavagem do átrio e as catedrais
E o pregoeiro a dizer:
Quem vai querer?
Quem vai querer? (bis)
Fubá de castanha
Pé-de-moleque, dendê
***Escola: Mangueira Ano: 1986Posição: Campeã Título: Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm Comentários/análise: Um dos sambas de enredo mais famosos da história. Quem nunca ouviu o refrão principal “tem xinxim e acarajé/ tamborim e samba no pé”? Falar de Caymmi é falar de Bahia, de baianidade. E tal obra do trio Ivo Meirelles, Paulinho e Lula captou bem todo o clima do cancioneiro de Caymmi. Pescadores, igrejas, terreiros, comidas típicas, nada fica de fora deste sambão que, sem dúvida, contribuiu para o título da Verde e Rosa ao contagiar toda a Sapucaí em 1986. Quem não gosta desta composição é ruim da cabeça ou doente do pé.
Letra do samba:
Mangueira vê no céu dos orixás
O horizonte rosa, no verde do mar
A alvorada veste a fantasia
Pra exaltar caymmi e a velha Bahia, ô ô ô
Quanto esplendor
Nas Igrejas soam hinos de louvor
E pelos terreiros de magia
O ecoar anuncia o novo dia
Nessa terra fascinante
A capoeira foi morar
O mundo se encanta
Com as cantigas que fazem sonhar (bis)
Lua Cheia
Leva a jangada pro mar
Oh! Sereia
Como é belo o teu cantar
Das estrelas
A mais linda tá no Gantois
Mangueira, berço do samba
Caymmi, a inspiração
Que mora no meu coração
Bahia, terra sagrada
Iemanjá, Iansã
Mangueira supercampeã
Tem xinxim e acarajé
Tamborim e samba no pé (bis)
***Escola: Mocidade Ano: 1976 Posição: Terceiro lugar Título: Mãe Menininha do Gantois Comentários/análise: Mais um espécime da magnífica safra de 1976, o samba de Djalma Crill e Toco diz que a avenida se transformaria em um enorme terreiro, um local que lembraria o reduto da Mãe Menininha. A composição é curta, apesar de possuir três refrões. O principal deles, aliás, ecoa melodicamente a famosa canção de Dorival Caymmi sobre a famosa mãe de santo do Gantois.
Letra do samba:
Já raiou o dia
A passarela vai se transformar
Num cenário de magia
Lembrando a velha Bahia
E o famoso Gantois
Arerê, arerá
Candomblé vem da Bahia
Onde baixam os orixás
Oh, meu pai Ogum na sua fé
Saravá Nanã e Oxumaré
Xangô, Oxossi
Oxalá e Yemanjá
Filha de oxum
Pra nos ajudar
Vem nos dar axé
Com os erês dos orixás
Oh, minha mãe menininha
Vem ver, como toda cidade
Canta em seu louvor com a Mocidade
***Escola: Império Serrano Ano: 1983 Posição: Terceiro lugar Título: Mãe baiana mãe Comentários/análise: O samba da parceria de Aluísio Machado e Beto Sem Braço exaltava o peso cultural da baiana, importante figura matriarcal no samba do Rio de Janeiro desde a época da Tia Ciata. Em 1983, estavam presentes no samba imperiano elementos caros à baiana, e à baianidade por extensão, como acarajé e capoeira, além da sua religiosidade, dos seus afetos e das suas origens. Constantemente lembrado na quadra do Império Serrano, trata-se de verdadeiro canto de amor a essa entidade fundamental que une a Bahia ao carnaval carioca.
Letra do samba:
Abre as portas, oh folia
Venho dar vazão a minha euforia
A musa se vestiu de verde e branco
E o pranto se fez canto
Na razão do dia-a-dia
Mãe baiana mãe
Empresta o teu calor
Eu quero amanhecer no teu colo
Onde deito, durmo e rolo
E isolo a minha dor
Eu quero, quero te saudar nesta avenida
Pra valorizar a vida
Que a vida valorizou
Mãe negra, sou a tua descendência
Sinto tua influência
No meu sangue e na cor
Iêê abará acarajé
Capoeira, filho da mãe
Pregoeiro, homem da mulher
Okolofé mamãe kolofé-lorun
Ai!Ê eu ai! Ê eu mamãe oxum
Baiana, baianinha boa
Teu requebro me enfeitiçou
Enfeitiçado, sambando eu vou
Baiana mãe baiana
É belo o teu pedestal
Eu te adoro e adorando imploro
Teu carinho maternal
Tia Ciata, mãe amor
O teu seio o samba alimentou
E a baiana se glorificou
*** Escola: Portela Ano: 2012 Posição: Sexto lugar Título: ... E o povo na rua cantando... É feito uma reza, um ritual... Comentários/análise: Taí um samba que sempre é apontado como um dos melhores deste século. E não é para menos. A obra foge de fórmulas fáceis e prontas de tempos recentes. Dialoga com sambas antológicos como “Bahia de todos os deuses”. A letra conduz o ouvinte a tudo aquilo que se impõe como baianidade. Luiz Carlos Máximo, Naldo, Toninho Nascimento (um dos compositores favoritos de Clara Nunes, homenageada no samba) e Wanderley Monteiro assinam essa composição, aclamada por sambistas desde o início do concurso interno para a escolha do samba da Portela.
Letra do samba:
Meu rei
Senhor do Bonfim alumia
Os caminhos da Portela
Que eu guardo no meu patuá
Eu vim com a proteção dos meus guias
Com Clara Guerreira à Bahia
Cheguei, eu cheguei pra festejar
Deixa levar, nos altares e terreiros
Tem jarro com água de cheiro
Vou jogar flores no mar
No mar
Procissão dos navegantes
Eu também sou almirante
De nossa Senhora Iemanjá
Vou no gongá bater tambor
Rezo no altar, levo o andor
Vem chegando os batuqueiros
Desce a ladeira, meu amor
Que a patuscada começou
Eu vim pra rua
Que o samba de roda chegou
Iaiá
De saia rendada em cetim
Bota o tempero na festa
Oi, tem abará e quindim
Portela cheia de encantos
Acolhe a Bahia em seu canto
Com festas, rezas, rituais
Vestido de azul e branco
Eu venho estender o nosso manto
Aos meus santos do samba que são Orixás
Madureira sobe o Pelô, tem capoeira
Na batida do tambor, samba ioiô
Rola o toque de olodum, lá na Ribeira
A Bahia me chamou
***Escola: Unidos de São Carlos Ano: 1969 Posição: Sexto lugar Título: Gabriela, cravo e canela Comentários/análise: Homenagedo por escolas como Império Serrano (1989) e Imperatriz (2012), Jorge Amado teve exaltada uma de suas principais criações literárias pela então Unidos de São Carlos, atualmente Estácio de Sá. Composto por Sidney da Conceição, Velha e Geninho, o samba menciona os encantos da sedutora e espontânea personagem-título e o efeito que ela provocava no apaixonado e compreensivo Nacib.
Letra do samba:
Foi na Bahia
Na cidade de Ilhéus
Que surgiu um grupo de sertanejos
Fugindo da seca do sertão
Junto estava Gabriela
Maltrapilha com uma trouxa na mão
E a poeira escondendo
Todo o seu encanto e sedução
Nacib ao contratá-la não esperava
Que ela fosse tão bela
E a retirante sertaneja
Tivesse as mãos tão divinas e habilidosas
Nos saborosos quitutes da Bahia
Nacib exclamou com tanta beleza que via
Tão bela, ô tão bela
O cheiro de cravo e a cor de canela
Ele se apaixonou
E com ela se casou
Gabriela moça pobre do sertão
Gostava de cantiga de roda
E de dançar com os pé no chão
Festejava o ano novo
No salão mais rico de Ilhéus
Quando passou a "Pastorinha"
Festejando reisado a cantar
Gabriela abandonou luxo e riqueza
Saiu correndo, pegou o estandarte e foi pular
Toda aquela gente importante
Foi para a rua com ela festejar
Mais uma vez a mulata
Demonstrando seu valor
Uniu pobres e ricos
Com a força do amor
Toda a cidade de Ilhéus
Comentava o idílio de Gabriela
Mas Nacib compreendeu
Que ela era uma flor
Nasceu para enfeitar a vida
De prazeres e de amor
*** Escola: Unidos de Lucas Ano: 1976 Posição: 12º lugar Título: Mar baiano em noite de gala Comentários/análise: Também de 1976, este samba melodioso exalta a festa de Iemanjá, em 2 de fevereiro, no mar baiano do Rio Vermelho. Com três refrões e repleto de termos que remetem às religiões afro-brasileiras, a épica obra de Carlão Elegante, Pedro Paulo e Joãozinho foi reeditada no Carnaval de 2005, ocasião em que a Unidos de Lucas ficou em oitavo lugar no terceiro grupo.
Letra do samba:
Zamburei, atotô, aiê ieo, agoiê
(E o negro chegou)
O negro chegou às terras da Bahia
No tempo do Brasil colonial
Com seus costumes e crenças, fé sem igual
O delogum mareou todo o povo do mar
Netuno a participar das louvações da rainha do Aiuká
Uma pedra, uma concha
Pedra e concha têm areia
Quem mora no fundo do mar é sereia
E o povo da terra em romaria
Integrava-se à magia
Os saveiros dos milagres
No azul-verde do mar
Senhores, sinhazinhas arrumadas
E os pregoeiros a gritar:
Tenho frutas, balangandãs
Vem comprar para a deusa do mar lhe ajudar
Hoje a festa continua
E a raça se iguala
Cantos e batuques anunciam
O mar baiano em noite de gala
Muçurumim, nagô
Omolokô, Congo e Guiné
Atotô de Zambi-rei do Candomblé
*** Escola: Em cima da hora Ano: 1976 Posição: 13º lugar Título: Os sertões Comentários/análise: Pungente, exalta a força do sertanejo em um episódio dramático da nossa história, a Guerra de Canudos, no interior baiano. Trata-se de uma das obras mais aclamadas da história do Carnaval carioca. Tal qual Euclides da Cunha havia estruturado no famoso livro, o compositor Edeor de Paula dividiu em três partes o seu samba: a terra, o homem, a luta. Marcado por fortes passagens como “foge o ar” para retratar a morte, esse samba sintetiza perfeitamente o extenso texto euclidiano.
Letra do samba:
Marcado pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar
Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte (bis)
Dizia o Poeta assim
Foi no século passado
No interior da Bahia
O Homem revoltado com a sorte
do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia
Os Jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal
*** Escola: Viradouro Ano: 2020 Posição: Em aberto Título: Viradouro de alma lavada Comentários/análise: Eis o samba mais recente desta lista. Este ano, a Viradouro, atual vice-campeã, vai em busca do seu segundo campeonato (o primeiro foi em 1997) homenageando as Ganhadeiras de Itapuã, que formam um dos principais símbolos culturais da Bahia. Com fartas doses de lirismo, a composição discorre sobre as origens, o cotidiano de luta e tudo aquilo que envolve as ganhadeiras. O samba é de autoria de Cláudio Russo, Paulo César Feital, Diego Nicolau, Júlio Alves, Dadinho, Rildo Seixas, Manolo, Anderson Lemos e Carlinhos Fionda.
Letra do samba:
Ora yê yê ô oxum! Seu dourado tem axé
Faz o seu quilombo no Abaeté
Quem lava a alma dessa gente veste ouro
É Viradouro! É Viradouro!
Levanta, preta, que o Sol tá na janela
Leva a gamela pro xaréu do pescador
A alforria se conquista com o ganho
E o balaio é do tamanho do suor do seu amor
Mainha, esses velhos areais
Onde nossas ancestrais acordavam as manhãs
Pra luta sentem cheiro de angelim
E a doçura do quindim
Da bica de Itapuã
Camará ganhou a cidade
O erê herdou liberdade
Canto das Marias, baixa do dendê
Chama a freguesia pro batuquejê
São elas, dos anjos e das marés
Crioulas do balangandã, ô iaiá
Ciranda de roda, na beira do mar
Ganhadeira que benze, vai pro terreiro sambar
Nas escadas da fé
É a voz da mulher!
Xangô ilumina a caminhada
A falange está formada
Um coral cheio de amor
Kaô, o axé vem da Bahia
Nessa negra cantoria
Que Maria ensinou
Ó, mãe! Ensaboa, mãe!
Ensaboa, pra depois quarar
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