Diamante ilusão, mulher não

Especialmente quando a ilusão do diamante inesgotável começou a desanuviar...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 19 de dezembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Só tinha comida quando tinha diamante” – me conta Dona Maria Áurea Alves Silva aqui à mesa do seu Restaurante dos Garimpeiros em Igatu, distrito de Andaraí, Chapada Diamantina.

Filha, neta e esposa de garimpeiros, ela é uma das muitas excluídas da história pelo silêncio imposto pela hierarquização da virilidade masculina, que sempre omitiu a imprescindível presença das mulheres no garimpo. Especialmente quando a ilusão do diamante inesgotável começou a desanuviar, que nem o nevoeiro da serra às oito da manhã, diante dos olhos daqueles homens de fé inabalável na sorte, e cuja única preocupação era a abastança do hoje como se não houvesse amanhã.

Foi quando a miséria, a fome, o flagelo começou a abater-se sobre o povo de Chique-Chique de Igatu nos anos 1930, que as mulheres abandonaram o seu posto de reprodutoras para se tornarem as principais provedoras do lar, acumulando à maternidade, ao trabalho doméstico, e às outras atividades já exercidas para “complemento” da renda do homem - como cozinheiras, rendeiras, lavadeiras, costureiras e empregadas domésticas - também a função de garimpeiras, enquanto eles amargavam a ressaca da desilusão, tão abatidos, que não poderiam sequer considerar a agricultura como uma opção de sobrevivência.

Dois altos: naquela época, você sabe, mulher de respeito era mulher que tinha um homem “para se encostar”, submetendo-se a qualquer coisa para não ser abandonada, o pior dos status. Quando viúva precisava logo amancebar-se. Era isso ou a prostituição. Algumas chegavam a se tornar “fornecedoras” dos seus maridos para que não partissem condenando-as à mais baixa reputação. (Crédito: Katia Najara/Divulgação) Para terem direito ao trabalho (muito mal) remunerado (mas o pouco com Deus é muito) elas criaram uma rede de solidariedade feminina para poder trabalhar fora de casa, revezando-se com as vizinhas no cuidado às crianças. Uma rede tão potente que até hoje perdura e é possível senti-la claramente entre as mulheres da mais nova geração.

Para terem acesso ao garimpo muitas precisaram masculinizar os seus corpos, vestirem-se como homens, e verterem goladas de cachaça a gargalo. Muitas fizeram de tudo por essa autonomia e alcançaram lugares de destaque como comerciantes, donas de quitandas e prostíbulos, capangueiras e até donas de garimpos, subvertendo completamente a divisão sexual do trabalho e a “lógica” do lugar da mulher.

“O diamante não deixou riqueza nenhuma pra gente, os capangueiro’ levaram tudo” – conta Dona Áurea, que garimpou junto aos homens de sua família. Levaram tudo, submetendo o povo a opressão e condições escravagistas de um trabalho perigoso, sujeito a seca e oscilações climáticas em localizações de difícil acesso, vulneráveis e totalmente desassistidos. Um trabalho pago com sacas de alimento que tinham o peso roubado por aqueles a quem deviam gratidão por terem matado-lhes a “fome de cachorro”.

E quando o Parque Nacional da Chapada Diamantina foi criado em 1985 proibindo definitivamente as atividades extrativistas, até mesmo das flores sempre-vivas, a crise atingiu mais uma vez seu ponto crítico, e o povo daqui sabe que sobreviveu graças aos laços de solidariedade e improvisos de sobrevivência, protagonizados sobretudo pelas mulheres.

Hoje, percorrendo essas ruínas históricas das casas abandonadas depois do sonho de riqueza evaporado, eu consigo ver nitidamente o sobe-e-desce dessas mulheres. Uma mão aparando a lenha na cabeça, na outra o menino; seus pés sobre o cascalho e os ecos de suas falas vindos do alto da serra; o tanger das galinhas, o bater das panelas, os olhos foscos onde não reluzem falsos brilhantes.

Mas para justificar essa coluna, que é sobre gastronomia, eu preciso dizer que isso tudo começou quando escolhi um restaurante pelo nome (Dos Garimpeiros) e perguntei para a cozinheira o que eles comiam à época. Dona Áurea, em toda a sua generosidade, não apenas me contou tudo sobre a comida no garimpo, como foi colher chique-chique no mato para me preparar um prato completo à maneira das tocas dos garimpeiros: Feijoada de garimpeiro com carne do sol, toicinho e mocotó; arroz, e cortadinhos de mamão verde, de palma, e de chique-chique, no fogão à lenha, com farinha e pimenta, naturalmente.

Ela conta que havia variações como o arroz de açafrão com carne do seu avô, e a salada crua da batata da serra, que só tem aqui nessa região, e que também costumava ser adicionada ao feijão. Isso, é claro, quando tinha diamante; porque em dias bicudos era rapadura e feijão com osso, quando muito.

Lá em cima, na toca de cada um, já esperavam as panelas de alumínio ou barro. Daqui de baixo subia quase tudo: arroz, feijão, carnes, farinha e temperos (sal, açafrão, alho, cebola, cominho, coentro, salsa e hortelã grossa da horta do quintal). Pelo caminho, o chique-chique e a batata da serra.

Meio-dia em ponto não tinha diamante certo, era hora de preparar a bóia, comer todo mundo junto, e fazer planos com a riqueza sob os seus pés, já que a sorte era certa e os diamantes para sempre.

Dos milhares e milhares de garimpeiros que cavucaram o cascalho dessas bandas, o distrito de Igatu conta hoje com pouco mais de 400 pessoas, que acreditam que agora o seu diamante é o turismo. Preocupante? Outros quinhentos.

Agradeço com todo o carinho do meu coração à minha pequena rede de mulheres de Igatu, em especial a Dona Áurea, essa maravilhosa e amorosa cozinheira sem igual; Dona Zelita (a última rendeira de bilro de Igatu que do alto dos seus 91 anos - segundo as nossas contas no batente de sua casa - prometeu me fazer, quando nada, um metro histórico); à fada Fafá que estendeu lençóis perfumados, floriu a casa e vai me levar lá em cimão para ver “as luzes”; a Dona Nívea, que fez o bolo de aniversário com glace de limão mais lindo e gostoso que eu poderia sonhar para mim; a Dona Delzuita, garimpeira também, rainha da juta, da lapinha e das cachaça’ de fôia de fundo de quintal, abrindo meus caminhos; a Daniella Silva dos Santos de Jesus e seu “Garimpo de Silêncios – a vida e o trabalho das mulheres nas Lavras Diamantinas – Igatu, Andaraí-Bahia (décadas de 1930 a 1970)” - minha referência bibliográfica para essas parcas e despretensiosas linhas; à minha amiga Silvana Alvim, e também às queridas Vanessa Alvim e Mariana Góis – as mulheres por trás da encantada Casa Ecos, que me acolheu como um abraço amoroso de irmã.

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva