Diário do isolamento: 'Medo de ficar sem trabalho e dinheiro', diz confinado há sete dias

Renato Saraiva é uma das pessoas que escolheu ficar em casa para se proteger do coronavírus

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  • Fernanda Santana

Publicado em 21 de março de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Há uma semana em autoisolamento voluntário depois do avanço dos casos de coronavírus no Brasil e na Bahia, Renato Saraiva, 45, relatou, numa espécie de diário de confinamento feito a pedido do CORREIO, como têm sido os dias isolado em casa. Entre angústias e medo, ele tenta se manter firme na decisão de não sair do apartamento e, assim, proteger, também, quem ainda precisa estar nas ruas. No quinto dia, a culpa e o medo o abalaram."Culpa de não conseguir cumprir o cronograma e as condutas planejadas. Medo de não ver mais minha família em Recife e de ficar sem trabalho e dinheiro", narra.Abaixo, ele destrincha uma rotina de altos e baixos e conta como tenta lidar afastado de pessoas queridas.

Confira relato: Hoje faz uma semana que estou em auto-isolamento em casa. A esta altura, essa palavra já entrou no meu vocabulário - e já a diferencio de quarentena, que, já aprendi, deve ser aplicada a pessoas com o coronavírus. Decidi pelo auto-isolamento com a escalada de notícias sobre a pandemia. Uma medida de cuidado combinada com uma amiga-irmã-comadre, ambos preocupados com o porvir. Passamos a ler tudo sobre a pandemia e a levar informação às nossas famílias, às amigas e amigos e ao número máximo de pessoas de nosso alcance.

O auto-isolamento é não só medida de auto-cuidado, para evitar "pegar" o covid-19. O auto-isolamento é medida de cuidado com as outras pessoas. Afinal, mesmo não sendo de um grupo de risco, posso contrair o vírus. Mesmo contraindo o vírus, posso ser assintomático. Mesmo sendo assintomático, posso transmitir o vírus para outras pessoas. Por isso, para quem tem o privilégio de poder ficar em casa, o auto-isolamento é fundamental. Como eu trabalho a maior parte do tempo por celular e computador, pude estar auto-isolado.

Nos primeiros dois dias, já convencido da importância do auto-isolamento, senti uma overdose de informações e comunicações. Li muito, pesquisei muito, naveguei muito, reativei redes sociais, espalhei muita informação confiável e checada. Foi importante como base para inclusive defender minha posição de ficar em casa. Mas dormi pouco, não me exercitei, comi mal, não consegui trabalhar ou estudar outro tema, muito menos me divertir ou me entreter. Fiquei muitas horas online. Saí excepcionalmente para o mercado e comprei mantimentos para menos de uma semana. A sensação interna foi de susto, cansaço e desânimo.  Renato Saraiva: medo de não encontrar a família (Foto: Acervo Pessoal) No terceiro e no quarto dia, percebi que precisava ajustar essas condutas. Estar bem por mim e pelas pessoas que precisassem de mim. Estabeleci um cronograma, com horário para começar o dia, ligar o celular, cozinhar e comer, limpar a casa, trabalhar e estudar e, sobretudo, horário para encerrar o dia. Logo eu, que não sou regrado em termos de horário, me vi acordando às 7 da manhã e indo dormir à meia-noite. Voltei a meditar e praticar yoga em casa. A sensação interna foi de organização e reequilíbrio interno em meio ao caos externo.

O quinto dia me pareceu o décimo. A consciência de que a vida não é linear me ajudou a afugentar culpa, medo e tristeza. Culpa de não conseguir cumprir o cronograma e as condutas planejadas. Medo de não ver mais minha família em Recife e de ficar sem trabalho e dinheiro. Tristeza diante de uma catástrofe humanitária, especialmente no Brasil, sobretudo para os mais necessitados. Me senti preso em casa e quis ir pra rua: encontrar pessoas, caminhar na orla, comer acarajé, dar um mergulho no mar. Me senti abafado e quis ir pra luta: como posso ser agente transformador dessa realidade? Respirei fundo várias vezes no dia.

Conversei com pessoas que me acolheram. Me lembrei que a vida aperta e afrouxa, requer coragem, como escreveu Guimarães Rosa. A sensação interna foi de desconstrução para reconstrução.

No sexto e no sétimo dia, já consciente de que não vou conseguir abraçar o mundo, revi meu próprio cronograma, priorizando atividades de casa e trabalho e criando espaços para conversas com família, amizades e amores. Voltei a meditar e praticar yoga, tive conversas para repensar os traballhos e projetos suspensos ou adiados, fiz a ponte entre empresas e comunidades para doação de álcool-gel. Saí para comprar mantimentos, com todos os cuidados de distanciamento social que a rua ora impõe, e abasteci a casa por quinze a vinte dias.

Agradeci esses privilégios, na esperança de que sejam utilizados para o bem comum e em prol da natureza. A sensação interna foi de consciência e de gratidão.

Por acreditar ser fundamental, seguirei em auto-isolamento. Certamente virão altos e baixos, mas assim é a própria realidade. Para todos nós. Com base nela, só nos resta evoluir.