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Paulo Sales
Publicado em 23 de agosto de 2021 às 05:02
- Atualizado há um ano
Os voos cegos rumo ao chão arenoso de Cabul são o desenlace trágico de um ato nascido do desespero. O mesmo desespero dos que se afogam no Mediterrâneo ou morrem de sede no deserto do Saara. O mesmo desespero dos que, mais de oitenta anos atrás, se viram desterrados de uma vida inteira em lugarejos da Polônia, Lituânia ou Bielorússia. Desespero movido a medo. Um medo sólido, visceral, que emerge diante do tanque da história, leviatã que esmaga aflições, desejos, aspirações e tudo aquilo que compõe um indivíduo.
Em seu livro de memórias, De Amor e Trevas, Amós Oz destaca o massacre de Rovno, cidade onde sua mãe nasceu, pelos nazistas: “Em junho de 1941, os alemães tomaram a cidade de Rovno, vencendo o Exército soviético, que a havia conquistado dois anos antes. Em dois dias, em 7 e 8 de novembro de 1941, os alemães e seus sequazes assassinaram vinte e três mil judeus da cidade. Os restantes cinco mil foram assassinados no dia 13 de julho de 1942”. Conseguem imaginar o que é isso? Vinte e três mil pessoas – homens, mulheres e crianças – mortas em dois dias?
O Afeganistão sob o Talibã volta a ser um inferno, como foram muitos outros regimes cuja matéria-prima é feita de opressão e intolerância. Observo pela tevê aqueles tipos barbados, carregando fuzis como se fossem troféus, e não consigo reprimir a repulsa diante de tamanha obtusidade. Penso no que já fizeram às mulheres, convertidas em pedaços de pano ambulantes, como fantasmas em pleno dia. E também no que fizeram às crianças do sexo feminino e a todos que eram e continuam sendo vistos como “indesejáveis”.
É sempre bom lembrar, guardar de cor, que esses mesmos elementos tentaram assassinar a ativista Malala Yousafzai, então uma menina de 15 anos. Sim, uma menina de 15 anos, atingida à queima-roupa dentro de um ônibus escolar por um adulto fortemente armado. É a nossa sina? Parece que sim. Mas não precisamos de um regime totalitário para nos depararmos com a brutalidade em estado bruto.
Semanas atrás, em Dourado, no Mato Grosso do Sul, uma menina indígena de 11 anos foi estuprada por cinco homens e depois jogada de uma pedreira de mais de 20 metros. Não sobreviveu. Repito: uma menina de 11 anos. É claro que listo aqui um pequeno rol de maldades das mais diferentes origens e motivações. Não dá para compará-las. Ou dá? As perguntas que permanecem, após tanto horror e perplexidade, são as mesmas: o que há em nós, espécie humana, que nos torna tão bárbaros, tão maus? Do que somos feitos, afinal? Essa é a nossa marca, o nosso caráter primordial?
Woody Allen certa vez afirmou, em entrevista a Eric Lax: “Realmente acho que o traço mais marcante da existência humana é a desumanidade do homem com o homem. Olhando de longe, se fôssemos observados por gente no espaço, acho que a conclusão seria essa. Não acho que eles ficariam deslumbrados com a nossa arte ou com tudo o que realizamos. Acho que ficariam de certa forma assombrados pela carnificina e pela burrice.”
Não gostaria de ser tão cético. A humanidade muitas vezes me fascina: a compaixão, a memória, a persistência em produzir beleza, a capacidade de avançar rumo ao desconhecido. Por outro lado, somos recalcitrantes na estupidez. É como uma chaga, uma nódoa, um carcinoma na pele que prospera de geração em geração, imune à evolução da espécie. Às vezes oculto, como se estivesse extinto. Mas sempre pronto a ressuscitar, personificado em dementes com fuzis a tiracolo.