Do remo ao futebol, Vitória lançou federações de diversos esportes na Bahia

Leão da Barra foi 1º clube fundado por nacionais e quase se chamou Brasileiro

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  • Vitor Villar

Publicado em 29 de março de 2021 às 13:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Márcio Costa e Silva / Arquivo Correio

O Vitória é um clube tão antigo, que surgiu no 11º aniversário da abolição da escravatura, no dia 13 de maio, e no 10º ano do Brasil como uma república. Eram novos tempos no país e também na Bahia, de um patriotismo ainda em gestação.

Tempos também marcados pelo fenômeno do Olimpismo: os Jogos Olímpicos tiveram a sua primeira edição da era moderna em 1896, apenas três anos antes da fundação do clube baiano.

O movimento, lançado pelo Barão de Coubertin, falava em desenvolvimento atlético e pessoal, em utilizar o esporte como instrumento de promoção da paz e da união dos povos, além de pregar o respeito às regras e aos adversários.

Como o próprio título diz, o Barão era um nobre francês. Ao final do Século XIX, as mudanças sociais, mesmo na Europa, moviam-se por meio da elite. E na Bahia de ares ainda coloniais não seria diferente.

Naquela Salvador, a prática esportiva era restrita à colônia inglesa, bastante numerosa por conta das várias atividades – navegação, ferrovias - que só os súditos da Rainha (na época, Victoria) dominavam.

Os ingleses que aqui viviam eram amantes do cricket, concentrando seus trainings em locais como o Campo Grande, a Fonte do Boi, no Rio Vermelho, e a Quinta da Barra. Ilustração mostra um training de cricket no Campo Grande (Foto: Reprodução/Site Memórias da Bahia) Os brasileiros, sedentos por aquela modernidade que o modo de vida europeu propalava, amontoavam-se para assistir. Mas a eles só era permitido o papel de gandula, buscando as bolas que escapavam. Só de vez em quando podiam substituir um inglês que faltasse.

Aqueles gandulas não eram brasileiros 'quaisquer'. Eram filhos da elite baiana, moradores das mansões da então Estrada da Vitória. Por conta dessa condição social, eles sabiam bem o que aquele movimento esportivo e social significava.“Os ingleses tiravam muita onda. Humilhavam, não deixavam os brasileiros jogarem cricket, usavam eles como gandulas. Então eles disseram 'a gente não precisa se submeter a isso, temos condições de ter o nosso próprio clube”, conta Paulo Leandro, doutor em Cultura e Sociedade e pesquisador da história do rubro-negro.Assim, surgiu o Club de Cricket Victoria. Da vontade daqueles jovens de praticarem esporte e trazerem para a população de Salvador – uma parcela seleta dela, na verdade – a revolução moral, social e até mesmo urbana que o movimento esportivo proporcionava aos europeus.

Clube Brasileiro

O Victoria, com grafia inglesa, foi fundado na mansão da família Valente, uma das mais poderosas da Salvador da época. Os irmãos Arthêmio e Artur, donos da casa, foram os mais influentes para a criação. Outros 17 jovens, todos igualmente moradores da Vitória, participaram da fundação.

Foi um marco para o Brasil, que só anos depois entenderíamos. O Vitória foi o primeiro clube fundado totalmente por brasileiros. Todos os anteriores tiveram a participação de pelo menos um estrangeiro. Artêmio Valente foi fundador e primeiro presidente do Vitória (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 anos) O jornalista Milton Filho faz parte de um grupo de pesquisadores que tem estudado as origens dos 19 fundadores, e assim entender esse traço eminentemente nacionalista: “Até onde se sabe, todos eram brasileiros. Por mais que alguns tivessem ascendência de outros países, já que suas famílias eram originárias de elites internacionais, com negócios fora do Brasil”.

Entre os fundadores estavam membros da família Costa Pinto, dona de numerosos engenhos no Recôncavo. Da família Tarquínio, pioneira da indústria baiana. E da família Martins Catharino, controladora de fábricas têxteis em todo o estado.

O clube seria batizado de Club de Cricket Brasileiro, para reforçar que aquela era uma agremiação voltada apenas para os nacionais. Se não fosse o bastante, as cores do uniforme seriam verde e amarelo. “Sendo Brasileiro, teria uniforme verde e amarelo. Faz sentido, né?”, conta Paulo Leandro.“Só que eles não tinham essa farda, porque na época a tinturaria não era tão desenvolvida e era difícil arrumar roupas coloridas. Então eles recuaram e fundaram o Club de Cricket Victoria, em referência ao bairro em que viviam. Também era algo patriótico, pois fazia uma homenagem ao logradouro por onde desfilaram as tropas vitoriosas que libertaram o Brasil em 1823”, completa o pesquisador.Enfim, os uniformes seriam calções pretos e camisas brancas, mais comuns. Fundado o clube, qual foi a primeira providência? Enviar uma comitiva para anunciar a criação do Victoria aos ingleses.

Era um claro incentivo à rivalidade: “Os ingleses receberam como uma boa notícia. Entenderam que, finalmente, exisitiria um clube, um adversário de fato, para que eles enfrentassem. Não ficariam mais só nos treinos, como faziam”, conta Milton Filho. Alguns dos primeiros escudos do Sport Club Victoria (Fotos: Reprodução) Foi assim que o clube pioneiro da Bahia provocou a fundação da segunda agremiação esportiva. Em 15 de novembro de 1899 surgiu o Club Internacional de Cricket, fundado pela colônia inglesa. Por sinal, esse foi o primeiro campeão baiano de futebol, em 1905.

Como destaca em artigo o pesquisador Coriolano da Rocha Júnior, professor da UFBA, a prática esportiva e o Vitória são representações de uma Salvador que buscava se modernizar em seus espaços públicos, na sua higiene e na sua disposição urbana.

“Os olhares se voltavam, como modelo, para países e cidades que já haviam orquestrado essas reformas e que tinham nestas pensado os esportes. E aí há de se imaginar que Salvador poderia fazer do mesmo jeito. O esporte surgiu como uma das novas formas de vivência, como uma prática social representativa da modernidade”, completou Coriolano.“O primeiro escudo do Vitória tinha, entre as imagens predominantes, um livro aberto, representando o conhecimento. É, portanto, um clube iluminista, não é um clube reacionário. Embora nascido da elite, ele se preocupa com a formação da juventude, atlética e moral”, adiciona Paulo Leandro.“Está na raiz do Vitória o acesso ao esporte. Aos ideias de união e companheirismo. Às lições de não trapacear, de respeitar as regras, de valorizar o adversário, de aprender com os vencedores. É o espírito do neo-olimpismo. Então, numa visão rasa, de disputa de classes, pode até parecer que o Vitória nasce do conservadorismo, mas ele tem um forte lado progressista”, completa o pesquisador.

O poder do remo

Talvez a maior representação desse potencial moral, atlético e urbano seja o remo. As regatas fizeram os soteropolitanos desenvolverem uma nova área da cidade: a Enseada dos Tainheiros, na Ribeira.

Todos os finais de semana, as famílias se deslocavam à cidade Cidade Baixa. Os clubes contratavam orquestras para animarem o evento. O local foi urbanizado para receber tanta gente, inclusive representantes da mais alta sociedade do estado. Regatas tornaram-se um evento social na Enseada dos Tainheiros (Foto: Reprodução) “É até difícil de visualizar isso, porque hoje o remo não está tão em alta quanto já foi um dia. Mas, até 1932, não se marcava jogo de futebol no mesmo dia de regata, porque era certeza de campo vazio, o pessoal todo ia para a regata”, conta Paulo Leandro.

O esporte era sinônimo de saúde, e caiu logo no gosto da elite soteropolitana. “O remo daquela época era como se fosse a academia de hoje em dia. Aquele esporte que a classe dominante pratica pra ficar fortão, malhado, com músculos avantajados, corpo bonito”, explica o pesquisador.“Os remadores eram vistos pela população de Salvador como mensageiros de uma nova ideia de saúde, homens que inspiravam a juventude a se portar de maneira digna e respeitosa”, escreveu em artigo o professor Coriolano Júnior. “A compreensão associava-se às expectativas de progresso. A capacidade de bem desenvolver, além do aspecto físico, os valores morais, a disciplina e uma pretensa rigidez”.O Vitória foi o timoneiro dessa revolução. O remo ganhou o clube em 1901, quando o sócio César Godinho Spínola sugeriu a criação da divisão náutica. Recém-chegado do Rio de Janeiro, ele praticava o esporte no Flamengo, maior clube da modalidade na capital do país.

Foi a inclusão do remo que deixou o clube como hoje o conhecemos. Primeiro, o Vitória adotou as cores vermelha e preta, em homenagem ao Flamengo e mais fáceis de distinguir nas regatas. Programa de uma regata do Vitória em 1909 (Foto: Reprodução) Além disso, com a inclusão de mais um esporte, não fazia mais sentido chamá-lo de Club de Cricket Victoria. Nasceu, assim, o Sport Club Victoria, que mais tarde abandonaria a grafia inglesa e se tornaria o atual Esporte Clube Vitória.

Em 5 de outubro de 1902, o Vitória fez a primeira grande exibição do remo em Salvador e uma grande façanha. Remaram do Porto da Barra até o Porto dos Tainheiros. O Diário de Notícias, principal jornal da época, cobriu o evento com pompa.

Foi o desenvolvimento do remo que forçou a manutenção de um espaço para a disputa das provas, a Enseada dos Tainheiros. Além disso, para que as regatas fossem organizadas, era necessária a criação de uma entidade que as regulasse. Remo foi o esporte que transformou o Vitória no clube como o conhecemos (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) Assim, em 29 de junho de 1904 surgiu a Federação de Clubes de Regatas da Bahia, a primeira entidade esportiva da Bahia. Como dito, o Vitória foi timoneiro de todo o processo: foi um dos fundadores, ao lado do Clube de Natação e Regatas São Salvador (de 1902), do Clube de Regatas Itapagipe (1902) e do Sport Club Santa Cruz (1904).

A primeira regata organizada pela federação ocorreu em 2 de abril de 1905, nos Tainheiros. E quem venceu? O Vitória. O rubro-negro é, até hoje o maior vencedor consecutivo de campeonatos de remo no país. Venceu 11 seguidos, entre 1943 e 1953. Poderiam ser 18 títulos, já que perdeu em 1954, mas voltou a dominar entre 1955 e 1960. O Vasco, do Rio, é o segundo, com 10.

Decano de todos os esportes

Quando criou a primeira federação da Bahia, o Vitória criou uma marca para si. Repetiria o status de membro fundador para quase todas as entidades esportivas do estado.

Em novembro de 1904, nasceu a Liga Bahiana de Sports Terrestres, tendo como fundadores o Vitória, o Club Internacional de Cricket, o São Paulo Bahia Football Club e o Sport Club Bahiano.

Como um complemento à federação de regatas, a LBST surgiu para regular os esportes que não eram náuticos. Àquela época, o cricket já perdia força. Tornava-se febre nas ruas de Salvador outro esporte de origem bretã. Claro que se trata do futebol. A Liga, inclusive, é predecessora da atual Federação Bahiana de Futebol (FBF). Time que disputou o Baiano de 1939 (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) É atribuída ao jovem Zuza Ferreira a introdução do futebol em Salvador. Em 1901, o estudante voltou de um período de estudos na Inglaterra trazendo consigo uma bola e um livro de regras. E, entre todos os clubes de Salvador, qual abraçou de primeira a nova febre do Velho Mundo?

Em 7 de junho de 1903 ocorreu o primeiro jogo conhecido de futebol em Salvador, reeditando a velha rivalidade do cricket. O Vitória empatou em 0x0 com os ingleses. Em 28 de junho, a revanche. Dessa vez, os brasileiros ganharam por 3x0.

Em 1905, foi disputado o primeiro Campeonato Baiano, vencido pelo Internacional. Em 1908, o Vitória conquistaria o seu primeiro título. Em 1909, veio o bicampeonato.

Também em 1905, ocorreu a primeira prova de atletismo da Bahia e, segundo alguns memorialistas, a primeira do Brasil. Foi uma corrida, com saída no Largo de Nazaré e chegada no Corredor da Vitória, no dia 15 de novembro. Time do Vitória que disputou o Baiano de 1940 (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) O Vitória não só estava lá como venceu a prova, com o atleta Henri Guedeville. Além do rubro-negro, participaram atletas do Internacional e do São Paulo Bahia. Graças a esses feitos na terra e no mar, uma frase foi cunhada e acompanhou o clube naquele início de Século: “Não há competição na Bahia sem a presença da bandeira vermelha e preta”.“O Vitória é fundador das federações de vôlei, basquete, atletismo, pugilismo. Se há um clube de fato multiolímpico em Salvador, esse é o Vitória. São os seus atletas que representaram a Bahia em provas a nível nacional por muitos anos”, diz Paulo Leandro.Leão da Barra

Na sua gênese, e muito por conta do remo, o Vitória montou a sua sede na Rua Cézar Zama, no Porto da Barra. A chamada garagem náutica funcionou ali até 1941, quando adquiriu um galpão na Rua Porto dos Tainheiros, na Ribeira, onde funciona até hoje o seu departamento náutico.

Mesmo após 80 anos longe do bairro, o Vitória continua conhecido como Leão da Barra. E faz sentido. Foi ali que o clube virou adulto e moldou a sua identidade.

Apesar de ser uma garagem para barcos, era ali que os rubro-negros treinavam saltos em distância e em altura, lançamentos, entre outras provas do atletismo. Numa quadra, deram os primeiros quiques na bola de basquete na década de 1930. Em 1933, o Vitória ajudou a fundar a federação do esporte. Time de polo aquático do Vitória nos anos 1930 (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) Foi na praia do Porto, a pouco metros, que também nos anos 1930 o Vitória participou dos primeiros jogos de polo aquático da Bahia. Na mesma água, deram as primeiras braçadas em provas de natação em mar aberto.

Como herança daquele trabalho, o Vitória consagrou o primeiro atleta a completar a Travessia Mar Grande Salvador, com José Liberato de Matos, em 1955 – um feito considerado superhumano na época. Em 1957, veio a primeira mulher a completa a prova, Marília Barreiros, também rubro-negra.

“Foi assim que nasceu essa história de 'leões da Barra'. Veio desse mito da capacidade extraordinária do atleta rubro-negro de ir bem em várias modalidades”, conta Paulo Leandro.“Nessa época, da gênese do Vitória e das federações, tinha atleta que praticava polo aquático no Porto da Barra de manhã, treinava atletismo e no mesmo dia ainda jogava futebol e remava (risos)! A alegria de um pai era casar a filha com um 'Leão da Barra'. Eram pessoas distintas, da alta sociedade, jovens bem educados mas também atletas admirados”, completa o pesquisador.Pelo pioneirismo, o Vitória é carinhosamente chamado como o Decano dos Esportes na Bahia. Pela presença na fundação de várias federações esportivas do estado, o clube foi reconhecido como entidade de utilidade pública em 21 de fevereiro de 1937.

A glória chegou ao ápice em 1953. Campeão baiano de 17 entre 18 modalidades esportivas disputadas – incluindo o título do futebol, o primeiro da era profissional da equipe –, o Vitória foi o primeiro clube do país a realizar uma parada esportiva, um desfile, na rua. Equipe de Natação do Vitória representou a Bahia em torneios nacionais (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) “Por aí você tira como aquele ideal, de criar um clube amante do olimpismo e versado em vários esportes deu certo. Você vê também como a cena esportiva em Salvador era rica no começo do século. Mas, se amesquinhou com a submissão ao mercado”, reflete Paulo Leandro.

Foi justamente a partir dos anos 1950, quando o futebol tomou conta da cena esportiva brasileira e que o profissionalismo tornou-se regra, que o Vitória deixou de investir na sua natureza multiolímpica.

A tradição do Vitória, fundado sob o ideal do amadorismo – da prática esportiva por amor, e não pela pura competição de quem é o melhor, custe o que custar – era usar atletas estudantes, comerciários, que disputavam futebol, de fato, amadoramente. Vitória foi pioneiro inclusive no Basquete na Bahia (Foto: Reprodução/Livro Um Menino de 84 Anos) Mas aquilo já não tinha mais espaço. Era impossível competir no futebol moderno sem investir em atletas profissionais, que podiam dedicar-se integralmente ao esporte e serem remunerados por isso. E para ter dinheiro e montar um time só de profissionais, o Vitória deixou de investir nos demais esportes.

“O mercado, a mídia, viram no futebol o esporte mais lucrativo, capaz de atrair mais gente. E assim, foi sufocando os outros, como é até hoje. Se não dá resultado, deixa de lado. Se não dá lucro, também. Não tem porque disputar. Deu resultado, pode existir. Não deu, fica em segundo plano. Essa perspectiva foi o que sufocou as demais modalidades no Vitória”, define Paulo Leandro.

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