Downadinhas: conheça histórias de soteropolitanas empoderadas com Down

Síndrome ocorre a cada 700 nascimentos

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de março de 2018 às 06:51

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Laís Souza, 27 anos, já foi ginasta. Chegou a ser campeã brasileira na modalidade em que disputava. Hoje, não pratica mais o esporte, mas se renova a cada dia. E, não, não estamos falando aqui da atleta que fez parte da Seleção Brasileira de Ginástica Artística e que sofreu um acidente enquanto treinava esqui. As duas podem até ter algo em comum, mas a Laís deste texto é uma soteropolitana que treinava ginástica rítmica e não se deixa abater por nada. 

Moradora de Pernambués, ela descobriu, na dança, uma nova paixão. Não consegue nem escolher um ritmo preferido, entre os que treina três vezes por semana na Companhia Opaxorô de Dança da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) Salvador. Com tanto amor, deixou a ginástica só na lembrança, quando competia entre jovens com Síndrome de Down e recebeu o título no início da década.  Laís foi campeã brasileira de ginástica rítmica (Foto: Marina Silva/CORREIO) No mês que abriga o Dia Internacional da Síndrome de Down, celebrado todo dia 21 de março, assim como o Dia da Mulher, Laís é uma das mulheres que luta contra o preconceito. Na quarta-feira (21), quando viu uma reportagem sobre o tema, abraçou a mãe e disse: ‘Sou eu’, como quem diz que a representatividade importa. 

Para a mãe, a aposentada Olga Cerqueira, 66, Laís sabe que é diferente.“Não sei dizer até onde ela entende isso, entende a síndrome. Mas ela sente. Às vezes, ela fala: ‘mãe, mãe, a moça está me olhando’. E eu digo: ‘ela está te olhando porque você é bonita’. E, assim, ela segue em frente”. Laís é a filha caçula de dona Olga, que também é mãe de uma moça um ano mais velha. Até o nascimento de Laís, ela não fazia ideia de que a filha tinha Síndrome de Down. Ela não consegue esquecer quando, no hospital, uma assistente social despreparada lhe deu a notícia. A profissional disse que a criança não andaria logo e que provavelmente nunca conseguiria falar. 

“Foi muito duro ouvir isso tudo. Eu me senti como um bolinho de carne que você tem na mão e não serve para nada”, conta. Foi tão traumático que ela só conseguiu ver a filha três dias após o parto – na época, Laís foi direto para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), porque nasceu com problemas respiratórios. 

Quando finalmente viu a menina, o medo desapareceu. Virou amor. De repente, dona Olga não queria mais sair da UTI neonatal. E o principal: decidiu que, dali em diante, faria de tudo para que a vida de Laís fosse exatamente o contrário do que a assistente social prometera. “Depois que ela saiu do hospital, cinco dias depois eu já estava na fisioterapia com ela”, lembra.  Laís é a filha caçula de dona Olga (Foto: Marina Silva/CORREIO) Aos nove meses, Laís já andava. Era o momento, então, de correr atrás da fala. Dona Olga foi em busca de vários lugares e nenhum parecia oferecer o que precisava – até que encontrou a Apae, quando a filha já tinha quatro anos. Foi quando a menina começou a socializar e se desenvolver.  

Laís ainda tem algumas dificuldades para falar, mas consegue se comunicar. Até os 16 anos, fez aulas de ginástica rítmica. Foi quando recebeu o título nacional – ela continua sendo a detentora, inclusive, uma vez que a competição não voltou a acontecer. Depois, entrou no grupo de dança. Lá, conheceu o namorado, com quem se relaciona há quatro anos. “Eu dancei (os espetáculos) O Malandro e Alice”, contou Laís, referindo-se às apresentações com o grupo. A versão de Alice foi rebatizada de ‘No País da Diversidade’. 

O namorado, que tem 27 anos, não tem Síndrome de Down, mas tem dificuldades de aprendizagem. Eles só se veem na escola, fora os finais de semana em que vai visitar Laís – sempre levado pela mãe dela ou pela tia dele, com quem mora. 

Laís está no terceiro ano do Ensino Fundamental. Sabe ler, escrever e gosta das aulas. Faz contas ‘no tempo dela’, segundo a mãe. Mas o que ela gosta mesmo é de ficar na internet. “Tem Zap (Whatsapp), Instagram, Facebook, tudo. Eu saio e deixo ela em casa, então quando chego vou futucar por onde ela esteve passeando”, diz dona Olga. 

A filha confirma. À reportagem, diz que gosta de ficar na internet e de jogos virtuais como homescapes (uma espécie de Candy Crush). Começa, então, a enumerar os amigos.“Tem Lenice, Érica e Cleisson. Tem Daniel, que é meu namorado. A gente vai para praia, cinema”, conta.Além disso, gosta de brincar com a sobrinha, Iana, de cinco anos. Outro dia, disse à mãe que queria dirigir. A resposta foi de que ela poderia aprender, mas não poderia sair na rua - só quando estiverem em (Costa do) Sauípe, fora de vias normais. Mesmo assim, Olga tenta dar alguma independência à filha. Ela atravessa a rua sozinha, vai à padaria comprar pão e já chegou a andar de ônibus da escola para casa – com a ajuda de algum funcionário para entrar no coletivo. “Ela é assim, danadinha, espertíssima. Sabe muito mais coisa do que eu. Eu chamo de minha ‘downadinha’.

Nos palcos Débora Gil, 27, também tem uma rotina intensa. Faz musculação, aula de inglês, dança e é uma das integrantes da companhia de teatro da Apae. Com o grupo, já apresentou Os Saltimbancos e, agora, trabalham na montagem de A Lei e o Rei.  Débora é atriz na companhia de teatro da Apae (Foto: Reprodução/Facebook) Ela já fez cursos profissionalizantes de auxiliar de administração, copa e cozinha e hotelaria. Mas é nos palcos que se sente realizada. É nos palcos que pretende seguir.“Nunca trabalhei, mas pretendo fazer coisas novas, se Deus quiser. Quero trabalhar como modelo fotográfica, atriz de novelas, cinemas, seriados.. Quero ser uma artista de sucesso”, diz ela, emendando que um de seus sonhos é conhecer o Rio de Janeiro. Além de acreditar que vai encontrar a cidade mais bonita de todas, Débora acredita que vai alcançar seus objetivos lá. Pretende conhecer gente nova e fazer amizade – inclusive, com os artistas. “Meu pai e minha mãe sempre apoiaram meus sonhos. Meu pai criou até um canal no YouTube, onde eu falo de muita coisa, falo de diversidade e mostro ensaios no teatro e minhas aulas de canto”, diz, referindo-se ao canal Débora Gil – A Arte de Down. Ela segue os passos de Cailana Bauer, a baiana que foi a primeira youtuber com síndrome de Down do Brasil. 

O pai de Débora, o artista plástico Gil Vilanova, 59, explica que, em casa, a decisão foi de sempre tratar a jovem como a família tratava a outra filha, que é um ano mais velha e não tem Down. Débora sempre estudou em escolas convencionais – ela cursou até o 9º ano e depois seguiu para cursos profissionalizantes. “Nunca nem informamos a ela que ela era portadora (de síndrome de Down). Deixamos que ela, sozinha, se descobrisse”. 

E, de fato, foi o que aconteceu.“Eu me descobri no próprio espelho da minha casa”, conta Débora.Um dia, ela, que devia ter entre 14 e 15 anos, se olhou e percebeu que era diferente. Se achou diferente nos aspectos físicos – como os olhos, o formato do rosto e, segundo ela, porque tem algumas dificuldades motoras.  Débora gosta de atuar e também pensa em ser modelo fotográfica (Foto: Reprodução/Facebook) “Fui buscando, pesquisando e vendo várias coisas que acontecem com as pessoas com síndrome de Down. Como elas sofrem com barreiras, preconceitos... Fui caminhando, fui investigando e tive conversas com meus pais sobre o que era, além de ter ido direto para a Apae entender”. 

Débora estava noiva até o início do ano. Namorou com o rapaz por um ano e seis meses e, quando ele a pediu em casamento, aceitou. “Ele não tem Down, mas também é especial. Não sei exatamente o que ele é”, diz. Só que ela decidiu terminar as coisas porque achou que a convivência não estava mais dando certo. Como outras tantas mulheres, percebeu que gostava mais da própria companhia.  Débora faz aulas de dança, inglês, canto e teatro (Foto: Reprodução) Estímulo  A estimulação dos pais às crianças com Síndrome de Down é muito importante, segundo a diretora médica geneticista da Apae, Helena Pimentel. Esses estímulos vão desde o acompanhamento de profissionais como fisioterapeutas e fonoaudiólogos à amamentação. “O que os pais precisam fazer é estimular, educar e ensinar o máximo do ponto de vista social e de vida independente. E aí, a gente vai observar o quanto elas são capazes de sair sozinhas, porque muitas saem sozinhas, namoram, trabalham”. A síndrome, na verdade, é uma alteração genética que acontece quando o cromossomo 21 é triplicado – ao invés de um par, a pessoa tem três. E isso acontece bem antes da gravidez: essa alteração vem desde a formação do gameta, seja o óvulo ou o espermatozoide. “Isso acontece casualmente. Entre os nascimentos, é de um a 700 a um a mil nascidos vivos. Pode acontecer com qualquer pessoa, qualquer raça, qualquer classe social e em qualquer lugar do mundo”. 

Segundo a médica, os aspectos mais comuns da síndrome são doenças do coração, má formações no esôfago e no pâncreas, hipotireoidismo e tendência à obesidade. Além disso, a maioria das pessoas com Síndrome de Down tem déficit intelectual, embora exista uma variação grande na expressão da própria síndrome – algumas podem ter um quadro mais grave, enquanto outras têm um quadro mais leve. Todas, no entanto, têm algum grau de dependência. “Esses pacientes devem passar também por geneticistas para entenderem porque isso acontece. E tem a questão da educação, de buscar independência, da criança ter limites como qualquer outra. Tem que dar espaço à criança, mas a gente não pode confundir um distúrbio de comportamento com falta de limite”. As meninas e mulheres com Down têm desenvolvimento sexual muito parecido com as jovens que não têm a síndrome. “Pode atrasar um pouquinho, mas elas vão entrar na menarca (primeira menstruação) e ter fertilidade próximo do normal”, diz Helena.

Uma das preocupações mais comuns dos pais, de acordo com ela, é se as filhas podem namorar. “Eu acho que devem (namorar). A preocupação deve ser que, se elas namorarem com um jovem que não tenha Down e seja fértil, que elas têm chances de engravidar, inclusive de ter um filho com a síndrome também”, explica. Se o companheiro for um homem com Down, as chances de gestação são menores, já que a maioria deles é infértil. 

Síndrome pode ser detectada ainda na gestação O diagnóstico da Síndrome de Down, normalmente, ocorre após o nascimento. De acordo com a diretora médica geneticista da Apae, Helena Pimentel, as próprias características físicas são um dos sinais. “Podem ter má formações associadas, mas não é obrigatório. Eles têm um atraso, do ponto de vista neuropsicomotor, que se caracteriza por uma hipotonia (redução do tônus muscular)”. 

No entanto, há exames que podem identificar a síndrome ainda na gravidez. Um deles é a aminiocentese, que é a análise do líquido amniótico, que é um procedimento invasivo realizado a partir da 15ª semana. Nos últimos anos, contudo, um dos exames oferecidos é o chamado teste pré-natal não invasivo (NIPT, na sigla em inglês), que pode ser feito a partir da 10ª semana, de acordo com a gestora técnica e administrativa do Laboratório Sabin, Tatiana Ferraz. “O exame é feito a partir de uma amostra de sangue normal em que não é necessário jejum. Para que ele seja realizado, é preciso de um pedido médico, porque a própria cliente vai ter que responder um questionário com dados”, explica Tatiana. A partir da 10ª semana de gestação, a amostra de sangue da mãe já tem DNA do bebê. Assim, o exame analisa alguns cromossomos e pode, inclusive, detectar outras síndromes, como a de Edwards (trissomia do 18) e de Patau (trissomia do 13). 

“Esse é um exame relativamente novo que vem sendo utilizado com frequência. O percentual de sucesso é de 99%, então o resultado negativo do teste não elimina a possibilidade dessas alterações genéticas. Existe uma pequena possibilidade de falsos negativos”, diz. Mesmo assim, ela defende o diagnóstico precoce. “Isso é muito importante, porque normalmente os portadores de síndrome de Down tendem a ser vulneráveis a outros tipos de anomalias”.