É proibido perder

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  • Gabriel Galo

Publicado em 26 de julho de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Desde o início destes Jogos Olímpicos tenho sofrido. No streaming da TV, dezenas de canais disponíveis, competições de todo tipo, num cardápio extenso de esportes. Pego-me logado em quase um catálogo da Netflix, em que ficamos navegando tempo demais até escolhermos aquilo que sempre vemos. Na busca por me manter a par do que está acontecendo, consigo uma proeza: efetivamente não assisto nada com atenção.

Passará o fim de semana e o problema se ampliará ao ponto do incontornável. O fuso horário invertido do Japão que passa metade do dia no futuro provocará impossibilidades na agenda de dia útil de meio de semana. Varar a noite para assistir aquele evento imperdível, bem, vai cobrar o seu preço.

Na racionalidade, não há por que impor-se regime de privação do sono. Ao acordar, ainda no mesmo dia nipônico da madrugada, haverá sequências de resumos, reprises. A medalha vai estar ali, o quadro atualizado, os melhores momentos, um VT com roteiro preparado para ativar sentimentos.

Ora, às favas! Soube desde pequeno a verdade incontestável: esporte é ao vivo. Afinal, suscitar paixões precisa do peito aberto do improvável. Da surpresa recebida com narração histórica, do funk invadindo o Japão na ginástica, no skate que transporta toda uma tribo urbana para dentro do mainstream olímpico trazendo até polêmicas e fofocas – pacote completo.

O afã de ser testemunha tem um pé no FOMO (fear of missing out, ou medo de perder alguma coisa, em tradução livre). Pesquisas indicam que cerca de 2/3 dos usuários de internet têm este distúrbio. Para tantos, descobrir algo com atraso é motivo de problematização séria. É como se no madrugadão fosse proibido perder – não os atletas, claro, mas nós aqui a assistir.

Fomos acometidos pela ilusão de onisciência, pautada na manchete rasa e na desatenção. É o efeito Dunning-Krueger aplicado ao desporto: não precisamos saber do que se trata, mas ter o conhecimento mínimo para acharmos que sabemos.

Mas tem também aspecto que não deve ser minimizado. E que elimina boa parte da racionalidade para expor um dos elementos mais belos da humanidade: senso de comunidade.

Se não há público nos centros esportivos, o senso de comunidade se perfaz nas redes sociais. Nelas, notívagos, tão irracionais quanto apaixonados, se unem nos comentários e opiniões embasadas, mesmo que o nome da vez fosse um completo desconhecido até 15 minutos antes, ou que nos provemos especialistas em modalidades que nem ao menos podemos listar regras. E é lindo. Mesmo que bata um arrependimento atroz depois de um zero a zero no futebol.

Em algum momento, estou certo, terei que tomar uma decisão muito difícil: escolher. Tolo, eu. Afinal, o que assistir? A que horas? E se eu não vir no instante o momento histórico e não puder sair contando pra todo mundo? Estou ficando velho demais pra essa rotina estafante, talvez.

No que entendo que possa ter encontrado uma opção. Zapeando pela lista de modalidades com transmissão, mas sem narração, percebo que é como se estivéssemos lá na Arena. Estirados, eu e minha esposa nos embrenhamos em comentários, experts que nos descobrimos no anonimato coletivo. Aí, perdão aos amigos e parceiros de redes sociais. É tarde, o fuso é invertido, vocês hão de entender: não há social mais maravilhoso que o aconchego de quem amamos. Perdi não; juro que só ganhei.

Gabriel Galo é escritor e tem sofrido para se manter acordado no ao vivo