Efeitos colaterais do confinamento

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  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Já são 3 semanas de isolamento por aqui. Passei a perceber coisas que não me chamavam atenção antes. Uma delas é que o vizinho de baixo fuma muito. Às vezes, são duas ou três sessões de fumaça por dia da varanda dele direto para o meu apartamento. Isso ajuda a tornar nosso isolamento familiar um pouco mais desagradável. Aqui em casa ninguém fuma. E por mais que eu entenda e respeite o fato de algumas pessoas fumarem, isso não torna agradável a sensação de ter a fétida fumaça do cigarro entrando em casa. Mas vida que segue. Algumas baforadas de nicotina não vão tirar o meu bom humor. Ainda não, pelo menos.

Outro fato que tenho percebido é que não é apenas meu Bento que é barulhento dentro de casa. Eu ficava cismado com o jeitinho extravagante do meu garoto e o silêncio da minha vizinhança. Aqui no prédio tem várias crianças. Algumas mais novas e outras mais velhas. Meu querido vizinho de porta, por exemplo, tem um casal em casa. Uma mocinha linda e um rapazinho quase da mesma idade do Bento. Eles são muito educados. No meio deste isolamento, passei a ouvir suas brincadeiras, choros e gargalhadas. Ufa! Achei que eu estava sozinho nesse desafio.

Desde que nos mudamos, minha preocupação sempre foi não incomodar a vizinhança com meu furacão particular. Mas o isolamento das últimas semanas revelou que não sou apenas eu que me desespero para conter a energia interminável da minha cria. Toda a vizinhança está de cabelo em pé para administrar suas bombinhas nucleares pessoais. São super-heróis aventureiros ansiosos por dominar o mundo lá fora que, por ora, só está ao alcance dos olhos. Olhinhos que passam bom tempo do dia colados nos vidros da janela. A verdade é que criança é tudo igual. E neste caso, só muda o andar. São caóticas, dramáticas e incansavelmente apaixonantes.

Mais do que controlar Bento, meu desafio interno é controlar minha ansiedade. Tanto burburinho sobre o nosso futuro incerto deve provocar o mesmo em você, que tá aí lendo meu desabafo. Não aguento mais ouvir que estamos no começo da subida desta montanha chamada pandemia. Eu queria mesmo é que chegasse o Natal. Obviamente estou preocupado com meus negócios e com a economia do mundo. Tenho amigos aflitos com o dia de amanhã. Empregados e empresários. Gente querida que não pode perder o emprego, fonte única de sobrevivência de suas famílias. Assim como amigos empresários que estão virando noites em claro fazendo contas para não demitir ninguém no meio desta tormenta.

Eu luto diariamente contra meus pensamentos. Mas por vezes, minha mente me sacaneia e joga imagens de sepultamentos de gente amada na minha cabeça durante o sono. Loucura. Sem falar nos sintomas fantasmas que por vezes acho que estou sentindo. Voltei a correr 3 vezes por semana aqui na rua de casa. Faço questão do exercício pra manter a sanidade física e mental. E pra ver se meu pulmão está funcionando bem. Lavo as mãos tantas vezes que nem consigo contar. Não quero nem imaginar a conta de água, energia e gás destes dias de isolamento. Os 2 banhos diários já se transformaram em no mínimo 4. A máquina de lavar roupa não tem descanso. Saio pra comprar algo na rua e quando volto, roupa na máquina. É insano. Apesar de cortejar com o visual careca de ser, agora o cabelo está crescendo e com ele, revelações incríveis estão surgindo: tenho vários cabelos brancos. Definitivamente, a boleta financeira, emocional e intelectual desta pandemia vai ser alta.

Não gostamos de sentir a dor da perda. Seja ela qual for. Perder não é algo que culturalmente nos deixa confortáveis. Eu adoraria que todas as previsões científicas estivessem erradas. Que no final de abril ou maio constatássemos que tudo não passou de exagero nosso de prevenção. Ah como eu anseio que seja isso. Mas a realidade fora daqui não tem nos dado tanta esperança pra este desfecho.

Com isso, meu desejo é que toda essa agonia desperte o melhor em nós enquanto cidadão. Se você for comprar ou contratar serviços neste tempo, dê preferência para os negócios locais. Ajude seu vizinho. Não permita que o pânico do presente tire a sua visão do futuro. Tudo isso vai passar. Você tem a condição de ser instrumento de sustentação para muitos negócios e empreendedores que estão perto de você. Esta semana, dentre vários exemplos bonitos de humanidade e cidadania, uma história me tocou. Um jovem empreendedor de Porto Alegre tem uma livraria-café de bairro na cidade. Ele escreveu em suas redes sociais que devido à crise, ele poderia entregar livros que as pessoas quisessem comprar, em suas casas. Caso não conseguisse vender, ele teria que fechar o negócio infelizmente.

Uma moradora do bairro, idosa, ficou emocionada com aquela história e ligou para a livraria. Perguntou o custo do aluguel, pediu os dados da conta do rapaz e depositou o valor. O rapaz constrangido disse que pagaria assim que a crise passasse. A senhora honradamente respondeu que não seria necessário pois ela fazia questão que os netos dela tivessem uma livraria no bairro para visitar, comprar livros e se apaixonar pela literatura desde cedo.

Desde ontem Bento tem tido menos apetite que o normal. E esse pequeno fato me lança para um lugar de defesa que eu odeio estar. Fico recolhido e acabo cedendo à tentação de olhar apenas para o meu quintal. Deixo de me preocupar com os outros. É isso que o medo causa. Eu vejo a temperatura de todos da casa 4 vezes por dia. Uma tosse não é mais apenas uma tosse. Uma falta de apetite do meu garoto tira o meu apetite. Tira o meu fôlego. Aumenta a minha pressão. Acelera os meus pensamentos. E enche os meus olhos de lágrimas com a possibilidade de algo pior.

O isolamento neste momento é necessário. Mas, se você me permite te dar um conselho, suplico que o fato de estarmos isolados não arranque de nós o pior que todos guardamos no mais profundo do nosso ser. Que o amor seja o grande vencedor durante este desconfortável momento que estamos vivendo.

Direto do confinamento, Gustavo Teles