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Kátia Borges
Publicado em 30 de julho de 2022 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Por mais que viajassem, entrando e saindo de aviões, desenhando distâncias, sentiam o mesmo perfume. A maresia os perseguia desde a infância, mesmo ausente vestígio de mar. Quando fechavam os olhos, um marulhar imaginário os embalava até que adormecessem, apenas para despertar em sobressalto, atingidos por pequenas ondas que se espraiavam em numa praia em que nunca puseram os pés. >
Aonde quer que fossem, correndo o planeta em fuga, os dois carregavam consigo oceanos. Como, às crianças, pede-se colar o ouvido numa concha e apenas acreditar no que abrigam. A melodia que reverbera nos labirintos em espiral, neles dispensava qualquer artifício de amplificação. Também costumavam experimentar na boca um gosto de sal. Como se o mar os habitasse, a maresia parecia vir de dentro. >
Não raro caminhavam sob a superfície da água até alcançarem a areia firme, a sólida areia fina, cada microscópico grão a fincar na pele. A areia macia, os tornozelos mergulhados na água fria, que subia e cobria coxas e sexo, encharcando os sentidos. Nela, aquele cheiro acariciava os seios e entrava pela boca. E, se sentia dor, era somente sede. >
Rios secavam dentro do peito dele, crustáceos passeavam pelo solo em busca de abrigo, peixes morriam, sufocados. Precisava, mais que mar, de algum estreito, pequena ilha, talvez um porto onde ancorar navios no espaço. Como no poema de Ana Cristina Cesar, que costumava rabiscar em guardanapos. Mal sabia que qualquer movimento é como o sacolejo de um saveiro, rasgando com sua quilha gigantescas ondas. >
Viviam assim, anos após ano, morrendo em despedidas, içar de âncoras, presa de iscas, vítima de arpões, acenando em escadas de aviões para as multidões de sonho que impendiam que se vissem, asas rasgando o espaço. A dez mil pés, suas cabeças repousando na poltrona, seus corpos carregando os sentimentos como numa bagagem comum, esquecida em alfândegas de países diversos. >
Falavam pouco por ignorância, para manter-se a salvo em lugares estranhos. Não desejavam maiores envolvimentos, muito embora sentissem estar imersos desde sempre. Queriam apenas que aquele mar minúsculo que carregavam dentro os levasse um ao encontro do outro, misturando suas peles, até que fosse possível finalmente partilhar o mesmo horizonte, navegação de cabotagem. Sem medo de um naufrágio iminente.>
Kátia Borges é jornalista e escritora>