Encontros e desencontros de final de ano em Praia do Forte 

Foto usada no nosso especial de 40 anos ajuda a recontar história de família e destino turístico

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  • Da Redação

Publicado em 29 de dezembro de 2019 às 12:00

- Atualizado há um ano

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A lembrança mais inusitada que tenho de Praia do Forte envolve um Réveillon. Mais especificamente, uma contagem regressiva de virada de ano, na qual, por incrível coincidência (ao menos é a versão oficial), uma ex-namorada saltou inadvertidamente de dentro da multidão para ser a primeira pessoa a desejar-me Feliz Ano Novo.

Já éramos ex havia alguns meses (depois de seis anos de relacionamento), e não marcamos de nos ver – e juro que, ao menos eu, não tinha a menor ideia de onde ela estava, e tampouco me interessava –, mas naqueles últimos segundos de determinado ano da década passada a moça explodiu na minha frente antes dos fogos na praia do Portinho.

Lembrei dessa virada maluca no início deste mês. Estava com minha atual namorada na mesma praia, desta vez interrompendo as férias para entrevistar o professor de capoeira Cacio Roberto Santana, 35 anos. 

Na infância, até moramos perto: ele em Fazenda Grande do Retiro, eu em Marechal Rondon, bairros quase vizinhos – embora ele hoje seja um ‘nativo’ de PF e eu um refugiado no RV. Mas este encontro de fim de ano nada tem a ver com essas mudanças de casulo. Tem a ver, sim, com desencontros e perdas que nós dois tivemos.

Começo a explicação por mim: a indigitada ex chegou a perder um bebê nosso (gravidez ectópica, três anos antes daquela chegada surpresa), evento que mudou os rumos de minha vida. Se o bebê viesse (e eu curtia a ideia), teria optado por Direito, e não Jornalismo, o que me impediria de estar aqui, na redação do CORREIO, editando o caderno especial de 40 anos, em janeiro deste ano. 

Viagem ao sobe e desce Um dos artigos que editei foi do economista Paulo Gaudenzi, ex-presidente da Bahiatursa e ex-secretário estadual de Cultura e Turismo, que veio a falecer menos de um mês depois da publicação. 

Em meio a milhares de fotos do acervo do jornal que eu poderia utilizar, escolhi uma do Portinho, feita por Antenor Pereira, que mostrava o bucolismo perdido de PF, frequentada então pelo que pareciam ser apenas nativos.

Entre as muitas crianças da imagem, uma delas é Cacio, que aparece em destaque, mais à frente, ao lado da mãe, Maria de Cássia Santana, e da irmã Carla Rúbia. Ambos caminham despreocupados pelo paraíso perdido, onde haviam decidido morar havia pouco tempo.

Cacio se reconheceu na foto e entrou em contato. Como demoramos de responder, chiou. “Acho q o pessoal não entende a importância dessa foto para os dias de hj em um destino turístico mais cobiçado do país! Seria interessante saber da pessoa da foto o que mudou hj, o que foi bom, o que foi ruim”, mandou ao Insta do CORREIO.

Interessado em saber que história era essa, fui ao seu encontro, diante da possibilidade de delimitar melhor a visão ampliada de Gaudenzi sobre a “Viagem ao sobe e desce do turismo”, título que eu tinha cuidado de escolher.

Quase xará de marca de relógio, Cacio enfim ganhou o tempo para lembrar o bom e denunciar/projetar o mau turismo que se fez/faz em PF. Mas primeiro cabe citar o valor sentimental que envolve o clique de Antenor.

Foto histórica A imagem, que na verdade é de 1991, também é um dos últimos registros de dona Maria de Cássia, que faleceu um ano depois, vítima de infarto, com apenas 33 anos. “Tava eu, minha mãe e minha irmã, e era aquela época em que todos eram nativos. Ainda era uma vila de pescadores. Pouquíssimas pessoas de fora”, recorda o capoeirista e arte-educador, ao iniciar sua viagem. Foto usada no especial de 40 anos do CORREIO, publicado em janeiro deste ano, mostra Praia do Forte em 1991. Nela, Cacio Santana aparece ao lado da mãe e da irmã, caminhando (Foto: Antenor Pereira/Arquivo CORREIO) A chegada e decisão de permanência no balneário veio após os pais atenderem a um convite da tia, baiana de acarajé. A proposta era que tomassem conta de uma barraca de praia. Vieram de vez e fincaram os pés, permanecendo mesmo após a morte da matriarca.

Talvez compensando a perda materna precoce, Cacio passou a delegar a si o cuidado e o zelo de uma boa mãe à nova terra. “Acompanhei todas as mudanças. Só quem a conheceu Praia do Forte há 30 anos sabe o que ela tinha a oferecer”, comenta ele, que é um dos poucos remanescentes. O próprio pai, seu Djalma Almeida, mudou-se para Açuzinho, do outro lado da BA-099, há 15 anos. Cacio Santana, hoje com 35 anos, se reconheceu na imagem e fomos ao seu encontro no mesmo local para refazer a imagem (Foto: Fernanda Dias/Divulgação) E quase todo mundo tomou decisão parecida, com a chegada dos endinheirados. “Nós, nativos, às vezes, nos sentimos acuados. Somos pressionados a sair e morar em outro lugar. As coisas são caras. Mas quem gosta dessa qualidade de vida, que ainda tem um pouquinho, não quer sair”, destaca o ‘guardião’ da tradição local, que relembra as lutas para melhorar a vida ali.

Força da grana E mesmo as vitórias, cita ele, tiveram um preço alto a ser pago. “Praia do Forte hoje tem dono... E eles dizem ‘agora vocês têm uma escola modelo, um posto de saúde, um módulo policial.’ Isso impressionou a gente. Foi uma coisa tipo ‘olha, tô fazendo isso pra vocês; muito legal, mas eu vou precisar vender isso aqui’. E quando a gente percebeu, já era tarde”, diz Cacio, citando um exemplo da força da grana que destruiu muitas coisas belas e bacanas: “Da rua principal você via a praia, mas nunca mais vai ver, porque construíram um condomínio com três andares”.

E a previsão distópica projetada por Cacio talvez seja mesmo destino, se nada for feito. Aliás, a própria foto antiga entrega tal rumo. “O mar avançou muito. Dá pra ver pelas barracas. As jangadas na foto não existem mais, e o coqueiral também é menor. Tinha área para banhistas ao lado da igreja, e agora não tem. A maré subiu muito. Quem tem seus condomínios na beira da praia, se prepare”, avisa ele, arriscando em seguida uma explicação para essa dominação: a divisão. 

“As pessoas da igreja, do esporte, da cultura, atuavam juntas, mas depois passaram a atuar como tribos e se separaram”, analisa. Mas vem aí mais um Réveillon maluco, que quem sabe bota esse povo todo junto de novo e a virada vira virada de jogo.