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Paulo Sales
Publicado em 10 de outubro de 2022 às 05:04
Vi recentemente um trecho do filme Glauber, Labirinto do Brasil, de Sílvio Tendler. É um testemunho duro, penoso. No enterro do cineasta baiano, o antropólogo Darcy Ribeiro discursa sobre o seu caixão. Estamos em agosto de 1981, no Parque Lage, Rio de Janeiro. Tendler levara uma equipe de filmagem para captar a multidão que se deslocara ao local para se despedir de Glauber. Entre as lágrimas e os soluços dos presentes, Darcy se lança em um discurso arrebatado:>
“Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando convulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia, que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava este país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura e não suportava, chorava, chorava, chorava…”>
Darcy prossegue: “Os filmes do Glauber são isso. É um lamento, é um grito, é um berro. Esta é a herança que fica de Glauber. O que fica de Glauber para nós: a herança de sua indignação, ele foi o mais indignado de nós, indignado com o mundo tal qual é, assim, indignado porque mais que nós também Glauber podia ver o mundo que podia ser... que vai ser, Glauber! Que há de ser! Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo louco.”>
Mandei esse trecho do filme para um tio meu, contemporâneo e amigo do autor de Terra em Transe, e ele me respondeu: “O terrível é que o choro de Glauber se prolongue pelos anos e que os seus soluços – nossos – ainda marquem a realidade do país, sempre à beira do abismo que ameaça tragá-lo”. Esse tio participou do movimento estudantil no início da ditadura militar pós-golpe de 1964 e, como muitos, exilou-se do país por décadas. Mais uma de nossas tragédias.>
Volto a Darcy. Era um sujeito bonito, sorridente, com os olhos ligeiramente puxados, como um nipônico. Fruto, provavelmente, de uma dessas muitas misturas étnicas que deram forma aos milhões de brasileiros que somos. Em 1995, sofrendo de um câncer no pulmão, ele fugiu do hospital onde se tratava para passar seus últimos dias na casa de praia que tinha em Maricá, no litoral do Rio. Lá viveu ainda mais dois anos, onde concluiu O Povo Brasileiro, seu livro-testamento.>
Fabricante de utopias e engenheiro de quimeras que, de tempos em tempos, são mais do que necessárias para a civilização evoluir, Darcy Ribeiro foi muito mais do que um antropólogo. Foi ativista político, vice-governador, senador, romancista, professor e imortal da Academia Brasileira de Letras. Um desses homens de esquerda que fazem um bem danado à sociedade em que estão inseridos.>
Folheio meu exemplar de O Povo Brasileiro e encontro ao final uma breve reflexão, na qual Darcy abre-se para a esperança, depois de dissecar nossas mazelas em profusão: “Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.”>
Imagino a desesperança que se estamparia no rosto de Darcy se soubesse o que foi feito do seu Rio de Janeiro. Talvez tenha dado sorte de ir-se embora antes que um aventureiro – ou pior, muitos – lançasse mão da cidade mais bonita e emblemática do Brasil. E como o seu semblante seria tomado por um tom sombrio, o mesmo que revelou no enterro de Glauber, ao se deparar com o estado de coisas em que o seu país se meteu. Sim, o risco maior de perder-se de vez, como se atolado em areia movediça.>
Naquele que já se tornou um clássico maior do cinema, Roman Polanski encerra assim a sequência repleta de atrocidades que culmina no triunfo do mal diante da impotência do bem: “Esqueça, Jake. É Chinatown”. Transpondo a frase para as bandas de cá, poderíamos dizer algo como: “Esqueça, é o Rio”. Ou seja, um caso perdido, irrecuperável.>
Mas corremos o risco de dizer também: “Esqueça, é o Brasil”. Enquanto milícias fortemente armadas, quadrilhas neopentecostais e vigaristas de todos os matizes avançam como urubus sobre a carniça. E nós, esgotados e vulneráveis, tentamos sobreviver entre a esperança e o desespero, como pêndulos loucos.>