Estudo da USP analisa eficácia da colchicina contra a covid-19 e não da hidroxicloroquina

Ao contrário do que diz publicação compartilhada por procurador da República, pesquisa não comprova a eficácia da hidroxicloroquina contra a doença provocada pelo novo coronavírus

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Publicado em 18 de agosto de 2020 às 21:00

- Atualizado há um ano

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Conteúdo verificado: Publicação feita em site de notícias focado nos tratamentos sem validação científica e compartilhado por procurador da República afirma erroneamente que pesquisa da USP comprova eficácia da hidroxicloroquina no combate à covid-19. É falsa a publicação intitulada “Estudo da USP confirma eficácia da hidroxicloroquina. Nome do medicamento é suprimido nas manchetes” que circula na internet. O texto, inicialmente publicado no blog Quinina, distorce dados de pesquisa da Universidade de São Paulo para defender medicamentos sem comprovação funcional no tratamento da covid-19. A publicação foi compartilhada pelo procurador da República Ailton Benedito, aumentando seu alcance.

O foco do estudo citado são os possíveis benefícios da colchicina para o tratamento da covid-19. Por isso, uma parte dos voluntários recebeu a droga e a outra, não. Isso serve para comparar os resultados obtidos por ambos os grupos. Ou seja, esse era o objeto do estudo.

A hidroxicloroquina junto com a azitromicina, medicamentos citados pelo blog, foram prescritas a todos os voluntários porque esse era o protocolo de tratamento padrão adotado no hospital onde e quando o estudo foi feito. Ao Comprova, os autores disseram que “é errôneo dizer que o presente estudo avaliou eficácia da hidroxicloroquina, da azitromicina ou da heparina”.

Tentamos contato com o editor do blog, J. A. Campetti Nieto, e com o procurador Ailton Benedito. O primeiro disse que o artigo não era de sua autoria e que repassou as perguntas do Comprova a quem escreveu. O segundo não retornou até a publicação desta checagem.

Como verificamos?Para dar início à investigação, o Comprova entrou em contato com a Universidade de São Paulo (USP) para verificar a existência da pesquisa, entender do que se trata e conhecer suas conclusões. Dois dos autores nos responderam por e-mail.

Também procuramos o site Quinina, que lançou o artigo usando informações manipuladas. Conseguimos falar com o editor por meio de mensagens na página do Facebook. Embora seu nome apareça no alto da publicação, ele alegou não ser o autor do texto: “No caso de seu questionamento, acredito ser válido. Como é um texto de opinião, sobre a pesquisa de Ribeirão Preto, enviei seus questionamentos ao autor, solicitando os apontamentos necessários que você solicita.”

Entramos em contato com o procurador da República que compartilhou o conteúdo, mas não obtivemos resposta.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 18 de agosto de 2020.

Verificação O estudo O artigo veiculado pelo site Quinina usa erroneamente dados de um estudo da USP disponibilizado em 12 de agosto na plataforma Medrxiv — que hospeda versões de artigos sobre ciências da saúde que ainda precisam ser submetidas à revisão dos pares (outros pesquisadores que podem validar o estudo). O nome original da publicação é Beneficial effects of colchicine for moderate to severe COVID-19: an interim analysis of a randomized, double-blinded, placebo controlled clinical trial (em tradução livre: Efeitos benéficos da colchicina para COVID-19 moderada a grave: uma análise provisória de ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado por placebo).

Foram convocados 38 pacientes, dos quais 35 permaneceram no estudo até o final. Parte dos voluntários tomou a colchicina além do tratamento padrão, enquanto a outra parte tomou o tratamento padrão e um placebo, substância sem efeito. Isso é importante para se avaliar qual foi o impacto da medicação analisada no tratamento. Os integrantes de cada segmento foram escolhidos de forma aleatória, e inicialmente nem os pesquisadores nem os voluntários sabiam de qual grupo se tratava. Isso é utilizado na ciência para melhor identificar a relação entre as variáveis que influenciam o resultado de um estudo.

O texto publicado no blog Quinina engana já no título ao destacar que o “estudo da USP confirma eficácia da hidroxicloroquina” no tratamento da covid-19. De acordo com o médico e professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Paulo Louzada Junior, um dos autores do artigo, é errado dizer que foi avaliada a eficácia da hidroxicloroquina, da azitromicina ou da heparina. Isso porque todos os participantes receberam a droga, uma vez que já faziam parte do então tratamento padrão no hospital.

Sem um grupo de controle, isto é, um grupo que recebeu o placebo em vez da droga, não é possível comparar a diferença e o impacto da hidroxicloroquina no tratamento. “O que pode ser dito, e de fato é dito no artigo, é que não houve evento adverso grave (arritmia, por exemplo) pelo uso combinado dessas medicações”, falou Louzada Junior ao Comprova.

Ele revelou que o estudo teve início em abril deste ano. Atualmente, a hidroxicloroquina não é mais empregada no protocolo da Instituição para o tratamento de pacientes internados com COVID-19. “Se este ensaio clínico tivesse iniciado hoje, não contaria a hidroxicloroquina no tratamento padrão institucional, que consiste de corticoides e heparina”, garantiu o médico.

Louzada reforçou que o resultado da pesquisa tem relação apenas com a colchicina: “A conclusão final do estudo foi que a adição da colchicina ao tratamento padrão da covid-19 levou à redução do tempo de uso de oxigênio suplementar, bem como redução do tempo de internação”.

O pesquisador complementou que não é possível compreender um ensaio clínico, com suas limitações e importância, somente pela leitura do resumo. E sugeriu “a leitura completa do texto, antes da divulgação inapropriada dos seus resultados”.

O que é colchicina? A colchicina é um anti-inflamatório utilizado no tratamento da gota. Entre as motivações para o estudo está o fato de não haver remédio que combata a infecção causada pelo novo coronavírus, apenas cuidados médicos para evitar a reação do corpo que gera um quadro inflamatório.

“A dose empregada (na pesquisa) foi a que se utiliza para o tratamento das crises, pois já se tem bem estabelecido estudos de segurança para o seu emprego em pacientes”, ressaltou Louzada Junior. Ele complementou: “A colchicina é um inibidor do inflamassoma, que é uma plataforma de estruturas intracelulares que se organizam para produzir duas citocinas pró-inflamatórias. Como já existiam estudos prévios que indicavam que estas citocinas poderiam estar envolvidas no estado hiper inflamatório presente nos pacientes com covid-19, esta foi a justificativa que embasou o seu uso como possível tratamento para os pacientes internados com pneumonia secundária a infecção pelo SARS-CoV-2.”

Hidroxicloroquina e azitromicina O Comprova já mostrou em outras checagens que nem a cloroquina, tampouco seu derivado, a hidroxicloroquina, têm eficácia atestada por autoridades no combate ao novo coronavírus. Duas das mais recentes verificações envolvendo esse fármacos são a que revela que estudo da revista científica The Lancet não fez com que Estados e municípios deixassem de receitar cloroquina e a que investigou a fala do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de que a cloroquina poderia ter evitado 100 mil mortes no país.

O médico francês Didier Raoult — mencionado pelo Quinina — publicou em março deste ano um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. A pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.

Pesquisas em padrão ouro para avaliação de medicamentos — que exige testes com grupos de controle e o uso de placebos — publicadas no Journal of the American Medical Association (Jama) e no British Medical Journal (BMJ) – apontaram que pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina não tiveram melhores resultados que aqueles que não receberam os mesmos remédios. Uma pesquisa realizada em 55 hospitais brasileiros e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) chegou às mesmas conclusões.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o National Health Service, do Reino Unido, abandonaram estudos com cloroquina e hidroxicloroquina. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou um informe, em julho, no qual pontua ser “urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da covid-19” diante das novas evidências científicas.

O Ministério da Saúde já distribuiu 5 milhões de comprimidos de cloroquina e ainda tem mais 4 milhões em estoque. Enquanto sobra cloroquina, faltam insumos para pacientes internados nas UTIs, como sedativos, anestésicos, analgésicos e bloqueadores neuromusculares. Esses medicamentos são fundamentais para os pacientes em estado grave que precisam ser intubados.

A azitromicina, também citada pelo blog Quinina, é um antibiótico. Medicamentos desse tipo podem ser prescritos por médicos para tratar infecções oportunistas (que se aproveitam da fragilidade do corpo dos doentes) causadas por bactérias. Mas a covid-19 é uma doença causada por um vírus, o SARS-CoV-2, e não pode ser curada por um antibiótico.

Conforme a OMS, não há, até o momento, tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus. Essa posição é ratificada por autoridades sanitárias como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a norte-americana Food and Drug Administration (FDA).

O site Quinina e seu editor Na seção “sobre”, o site afirma que o editor é J. A. Campetti Nieto, descrito como “graduado em Gestão Ambiental, empresário da comunicação há 20 anos em Minas Gerais.”

Pelo Facebook, em resposta ao Comprova, o editor descreveu o Quinina da seguinte forma:

“Um site criado com objetivo inicial de reunir bibliografia científica e jornalística sobre os derivados da quinina, utilizados no combate ao covid-19. Com a evolução dos conhecimentos sobre o coronavírus, o Quinina passou a acompanhar a aplicação dos protocolos de tratamento precoce da doença.”

Em seu perfil no Twitter, Nieto descreve-se como “jornalista dissidente sem diploma, fotógrafo e catador de coquinhos”. Seus posts, geralmente, são favoráveis à cloroquina e em defesa das ações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Atualização Após a publicação desta verificação, o autor do texto respondeu ao Comprova reafirmando o conteúdo do que publicou. Ele também acrescentou que, no registro do estudo, os pesquisadores nomearam o ensaio como “Estudo clínico sobre o tratamento da COVID-19 com Cloroquina e Colchicina” e que, ao publicar os resultados, teriam suprimido a palavra cloroquina do título. O Comprova, então, retomou o contato com os pesquisadores da USP responsáveis pelo estudo. Por email, Paulo Louzada Júnior destacou que a palavra cloroquina segue no título do ensaio clínico e explicou por qual motivo ela aparece lá. “Este ensaio clínico foi elaborado nos meses de fevereiro e março de 2020, época em que a cloroquina era considerada como uma (talvez a única) opção terapêutica para a covid-19. Assim, na elaboração do ensaio, não cabia, naquele momento, ter um grupo de estudo que não fosse tratado com a cloroquina”. Louzada Júnior reafirmou, ainda, que o estudo não verifica a eficácia da cloroquina, uma vez que todos os pacientes fizeram uso desta substância, sendo impossível, portanto, medir o efeito da cloroquina [atualização publicada em 20 de agosto de 2020].

Por que investigamos? O Comprova, em sua terceira fase, verifica conteúdos relacionados a políticas públicas e à pandemia do novo coronavírus que viralizaram nas redes sociais. Este texto do site Quinina foi compartilhado 385 vezes no Facebook. Também foi postado no Twitter pelo procurador da República Ailton Benedito, ampliando o seu alcance.

No caso da covid-19, mentiras e boatos que se espalham pelas redes sociais são ainda mais perigosos porque podem custar vidas. A falsa noção de segurança causada pela ideia de um tratamento sem comprovação científica pode levar a população a não seguir as recomendações das autoridades médicas, como lavar as mãos, usar máscara e manter distanciamento social.

No caso das publicações do Quinina, o texto pode induzir ao uso de medicamentos sem comprovação validada cientificamente, colocando pacientes em risco. O Comprova já verificou diversos conteúdos com desinformação sobre o uso da cloroquina no tratamento da covid-19, como estudos sem comprovação científica, textos falando do uso da droga em outros países e declarações polêmicas de médicos. Comentários do presidente Bolsonaro e seus apoiadores sobre a pandemia também já foram checadas.

Falso, para o Comprova, é todo o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.

*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 29 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do Estadão e Gaúcha ZH, e validada, através do processo de crosscheck, por seis veículos: UOL, Folha, Jornal do Commercio, Nexo, SBT e BandNews FM.