Etiqueta para o fim do mundo

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  • Kátia Borges

Publicado em 29 de maio de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Estou escrevendo um novo livro de poemas. Sei que interessa a poucos, esse ato solitário. Também a poucos diz respeito o que faço. Mas escrevo com coragem esta crônica. É preciso dar a cara a tapa, ouço e aconselho. É o último domingo de um maio muito longo, e há consenso sobre a chegada da terceira onda do vírus. Somos um laboratório a céu aberto, leio em algum lugar. 

País-continente, o quinto em extensão no planeta, doze milhas submarinas além do Mar Territorial. Penso em textos e formatos. O coração ali dentro, racional e capricorniano. Faço os preparativos para a escrita como quem organiza um ritual do chá. A água ferve, a chaleira apita. Sei que há música aqui em algum canto. Movo as almofadas coloridas de lugar e não a encontro. Não temos salvação, diz o papa. 

Ignoro a etiqueta para o fim do mundo, por mais que pareça ridículo, e me guardo para um carnaval imprevisível. Os enfeites, com que cerco o cotidiano, movimentam-se ao redor do desespero como pequenos soldados verdes, o exército de pássaros desconhece a sua importância nas manhãs. Também ignora que alguém o olha com devoção, a nesga de azul na sala. Tudo me chama para a luz do sol de inverno. 

No momento, invento jeitos de cuidar de mim. Falo baixo comigo, baixo, baixo, baixo. Com as paredes do quarto, de início. O que será que pensam? Que tudo passa, passa, passa, passa. Agora, digo, assumo o fato: estou escrevendo um novo livro. A primeira página ainda em branco. Uma frase após a outra forma um verso que, disperso, logo descarto. Um golpe de vento na nuca. Tudo me chama para o texto.

Os dias têm seguido lentos. Se você me perguntasse, eu diria que é inacreditável. E lembro de quando você falava “veremos o que tempo fará de nós”. Mas a verdade é o que nos fizemos. Antes mesmo do distanciamento, quando ainda podíamos sair por aí e sonhar com um reencontro. Quando a vida era mais fácil, havia sempre uma mesa vazia perto do mar, uma mesa de bar, acolhedora que só. 

O garçom fazia graça do meu jeito, o caderno de notas aberto, o bailar da caneta. Observando o movimento das pessoas, as estátuas de Jorge e Zélia. Jorge e Zélia sentados de mãos dadas diante do mar do Rio Vermelho. Eternos. Que aqui tem azul em todo canto. Que conheço as linhas com que desenho planetas. Que enxergo os contornos dos móveis se fecho meus olhos. Que assim também me vejo.