‘Eu até tomo banho de máscara. Antes, não sentia medo assim’, diz caminhoneiro que vive pandemia nas estradas

O medo é uma das chamadas emoções básicas e pode ser potencializado na pandemia

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  • Thais Borges

Publicado em 12 de junho de 2021 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução/Disney Pixar

Para lidar com os sentimentos da pandemia de forma saudável, devemos entender o que se passa. Na Psicologia, os 'estados afetivos emocionais' são justamente os sentimentos, emoções, humores e afetos. Apesar de serem tratados como sinônimos, não são a mesma coisa. 

As emoções do filme Divertida Mente de fato têm um papel importante para os humanos. Segundo a professora Sônia Gondim, do Instituto de Psicologia da Ufba, esses cinco estados - medo, tristeza, raiva, nojo e alegria - são as emoções básicas. 

Leia a reportagem principal: Quando seus 'divertidamentes' começam a brigar: entenda como ficam os sentimentos na pandemia

O CORREIO conversou com pessoas que estão passando por diferentes estágios desses ciclos de emoções e sentimentos. A seguir, dois relatos de pessoas que estão passando pelo medo.  

‘Eu até tomo banho de máscara. Antes, não sentia medo assim’, diz caminhoneiro que vive a pandemia nas estradas

Márcio Teixeira, 43 anos, é caminhoneiro autônomo há 20 anos e parou de trabalhar por dois meses no ano passado. Depois, a situação apertou e ele teve que voltar para a estrada. Hoje, intercala semanas de folga com semanas trabalhando nas rodovias do Brasil, levando produtos da indústria de borracha e de implementos agrícolas. 

“Quando teve a primeira morte da pandemia no Brasil, eu estava no Rio de Janeiro. Aquilo me assustou bastante. A partir dali, eu fui já fui me planejando pra poder parar de viajar, com medo porque era uma coisa nova. Parei durante 58 dias e como minha noiva estava grávida, não tive como ficar mais tempo. Retomei minha vida no novo normal, mas sempre de forma muito tensa. 

A grande alegria da pandemia foi nossa bebê, que veio em agosto do ano passado. Porque o resto foi só medo, angústia e preocupação. Tenho angústia o tempo todo nessa pandemia, por não poder abraçar ninguém, ver ninguém. Eu sou muito de conversar, abraçar, rir. Sou muito carinhoso com as pessoas e não estou podendo ter esse carinho. Estou me sentindo estranho, porque isso me transformou em outra pessoa. E é o medo que traz essa angústia, porque é o medo de não saber o que vai acontecer com você, com sua família. Perdi dois amigos para essa doença. Um tinha várias comorbidades, não acreditava na doença e não deu. Meu primo ficou 18 dias internado. Fui ao dentista uma vez porque senti uma dor de dente horrível, da noite para o dia. E você aí percebe a falta de cuidado das pessoas. A maioria esmagadora não tem cuidado algum, não tem cuidado com o próximo, não entende que a empatia vai resolver a situação. 

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A gente vive no caminhão. Algumas pessoas, como eu, cozinham no caminhão. Quando vou a restaurantes, eu pego só a marmita, passo álcool em tudo. Até no garçom, se for o caso. Todo mundo almoça meio-dia, eu almoço 14h.  Márcio mudou a rotina no caminhão por conta da pandemia (Foto: Acervo pessoal) E tem a questão do banho, porque usamos muitas coisas coletivas e o banho é uma delas. Geralmente, tomamos banho em postos ou nas empresas onde fazemos carga e descarga.  Tenho tanto medo que eu tomo banho de máscara e passei a alternar os horários. Meu pai inventou até um chuveiro móvel, que é um galão de 20 litros adaptado. Ele pegou um cano na tampa desse galão e fez um chuveiro com a torneira. Ele enche e toma banho tranquilamente em lugares reservados. 

O que eu comecei a fazer foi reforçar minha espiritualidade, que já era forte. Sou católico, mas agora assistimos à missa online. Todo dia, a partir das 17h50, tem um terço naquele canal Canção Nova. E passei a ler um pouco mais. E tento me apegar à minha família, minha filha. Tive várias vezes esses ciclos de emoções. No início, quando não tinha muita informação. era o pânico. Eu até parava para ver se estava respirando. Quando cheguei em casa da primeira viagem, tinha passado 21 dias e voltei com sintomas de gripe. Lembro que fiquei preocupado. Aí veio a minha filha, porque tínhamos sempre as consultas com minha noiva e gestante. Era aquilo de ficar no hospital e vinha uma bomba de vírus. Eu não sentia medo assim antes. Acho que ansiedade a gente sempre tem em alguns momentos decisivos da vida, mas não era essa tensão de ter que tomar cuidado com tudo e todos. A gente esperava que acontecesse uma guerra, mas não esperava o que está acontecendo. Me sinto engasgado, louco para fazer um churrasco, dar um grito de liberdade. Porque é um sentimento de prisão". 

“O medo veio quando eu percebi que as coisas só estavam piorando”, diz estudante que sofre de ansiedade 

Para a estudante de Psicologia Cora*, 21, o medo provoca outra reação: ansiedade, um transtorno com o qual ela foi diagnosticada ainda adolescente. Ela tenta lidar com essas emoções através do tratamento, mas também com exercícios físicos e de mindfulness (uma técnica que ajuda a cuidar da mente). 

“Esse sentimento vem com a ansiedade. Quando essa ansiedade está mais intensa, meu coração fica mais acelerado, como se tivesse uma coisa comprimindo no peito, uma coisa apertando. De modo geral, perco o apetite e sinto que é mais difícil prestar atenção nas coisas, me concentrar. Tenho mais dificuldade para planejar o meu dia, fico mais quieta. 

Eu me considero uma pessoa ansiosa de forma geral, sendo que na adolescência isso ficou mais intenso. Eu recebi um diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada. Desde então, faço acompanhamento psicológico e psiquiátrico para isso. Faço exercícios para isso. Desde que entrei na universidade, não tinha tido crises de ansiedade. Foi assim até o ano passado, quando tive uma crise em meio a uma aula remota. Voltei ao psiquiatra e a gente combinou de aumentar a dosagem do remédio. A terapia ficou ainda mais fundamental e eu tive que pensar em outras estratégias. Passei a fazer exercício de mindfulness, que comecei num projeto de extensão da universidade. Comecei a caminhar ao ar livre e a tentar manejar isso. No começo, eu tinha um certo otimismo porque achava que as coisas não tomariam essa proporção que tomaram. No meio do ano passado para o final, quando diminuíram os números (de infectados) e começaram a sair notícias de vacina, veio um certo otimismo. Mas a alegria foi bem pontual quando algumas pessoas próximas a mim, parentes, se recuperaram da covid e tomaram vacina. E os negativos como raiva vieram em momentos que eu acompanhava algumas notícias, via o posicionamento do presidente, via aglomeração. O medo veio quando eu percebi que as coisas só estavam piorando, no primeiro semestre do ano passado, e esse ano com o aumento do número de mortos e falta de oxigênio em alguns estados. 

No começo do ano, passei por uma situação complicada, com pessoas de dentro da minha casa contaminadas e a morte do meu avô. Um tio chegou a ir ao hospital e foi um momento muito triste. 

Eu faço terapia toda semana e, para mim, é importante também ter momentos para não ficar exposta a telas. Preciso desse descanso. Tenho o privilégio de ter feito terapia por muito tempo, então eu aprendi a lidar de diversas maneiras. O curso que eu faço também contribuiu para aprender estratégias para lidar com as emoções. 

Hoje, eu tento regular as emoções de acordo com a necessidade. A raiva, por exemplo, pode ser muito mobilizadora para mim, para colocar coisas em prática. Às vezes preciso falar com alguém sobre o que estou sentindo. Mas em geral é ter uma consciência daquilo e vivenciar aquilo".

*Nome fictício