Eu temo que

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  • Kátia Borges

Publicado em 20 de outubro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Tenho que concluir esse texto. Não importa se ainda não há uma única palavra no papel e o relógio marca quase três horas. Sou resistente ao sono, quer ver? Eu minto que. Escrevo rápido. Aprendo rápido. Eu tenho que. Aprendi francês em módulos. Esqueci tudo que aprendi. Perdi um tempo enorme no Le Monde.

Eu tenho que criar personagens. Reúno as anotações sobre ambientes e modos. Autoficção é uma praga, dizem os teóricos. Eu tenho que parar de cutucar essa feridinha na ponta da unha com um alfinete. Cada dia uma fisgada. Uma fisgadinha. Eu tenho que. Não dá para viver de sonhos, digo sempre que acordo. Há contas a pagar, você sabe. Eu tenho que esquecer esse incômodo.

Mas como é gostosa, essa dorzinha, essa coisinha perfurante na ponta, essa sensação de carne que se contrai e que se expande. Como se sentir vivo, dolorido, por segundos, entende? Trabalho todos os dias de modo exaustivo. Eu tenho que. Digno e sensato, acordo cedo mesmo se não durmo. Checo os envelopes com cuidado.

Não você não você não você não você. Eu tenho que sair desse país, dessa cidade, desse bairro. Checo rotas, imagino fugas. Descubro que há uma passagem de volta ao mundo em que se voa em um único sentido. Penso em comprar uma bike dobrável Pliage, em adotar um recém-nascido e pôr nele o nome de Santiago. Eu tenho que.

Deixar um legado. Um legadinho legalzinho. Um legadinho. Que seja. Uma história linear que se cumpra, para o bem do algorítimo. Eu tenho que mentir que já não sinto. Derramar o sentimento, leito, leite, lábia. A moça que escreve em seu diário, o seu diário. A moça que deixa a vida e um bilhete. A moça que silencia, só que grita às vezes. Há infinitas possibilidades quando se tem que.