'Eu vi duas pessoas sendo mortas', diz testemunha de chacina no Horto

O CORREIO conversou com uma das testemunhas do crime que teve quatro mortos, incluindo um bebê

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 22 de dezembro de 2019 às 06:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arte sobre foto de Arisson Marinho

Nos primeiros dias após o crime, ela sequer conseguia falar sobre o que aconteceu. Desde então, não dorme direito. “Chego em casa cansada, durmo duas ou três horas e não consigo dormir mais”, conta. Justo no dia seguinte ao assassinato de quatro motoristas de aplicativo, esperava um Uber em frente ao condomínio de luxo Vale do Loire, no Horto Florestal, quando viveu momentos de desespero. 

O CORREIO conversou com uma das testemunhas oculares da chacina do Horto no sábado passado. Ela, que preferiu não se identificar, saía do trabalho e só queria voltar para casa. O primeiro clarão de tiro foi seguido por correria. Quando deu por si, estava no chão: “Caí, machuquei a perna e desloquei o ombro”. Não chegou a ver a primeira vítima ser atingida. Ao se levantar, viu o assassino em pé, da porta entreaberta de um carro branco, atirar em mais duas pessoas. “Vi na hora que atiraram nelas e elas caíram”, contou, através de áudio de WhatsApp (leia abaixo o relato completo).

O governador Rui Costa prometeu cobrar empenho da polícia para identificar os criminosos, mas ninguém foi preso ainda. O secretário de Segurança Pública, Maurício Barbosa, até o momento não se pronunciou sobre o caso. Já a SSP informou apenas que as investigações estão em curso.

Mas há algo muito mais misterioso nesse caso. Quem era o bebê que aparentava ter pouco mais de um ano e meio e também acabou morto? “Eu não vi o bebê. Na hora perguntaram se ele era meu”. Até agora, ninguém apareceu para reivindicar o corpo no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR).

O que se sabe é que, no final daquela tarde, morreram Ana Paula Ramos da Silva, 18 anos, Diógenes Rosário da Rocha, 29, e Suedson Oliveira Coelho, 38. Eles foram jogados no meio da rua e executadas a tiros. O bebê, também baleado, foi o único que não morreu no local. Ele foi socorrido para o Hospital Geral do Estado (HGE), mas não resistiu aos ferimentos, e o óbito foi confirmado menos de 24h depois do ocorrido.

Segundo o governador, o motivo da chacina está claro: disputa pelo tráfico de drogas em Santo Amaro e Saubara.  Segundo ele, representantes dos dois grupos estavam morando em Salvador, e a ação seria uma vingança entre eles.

 Relato “Eu tava na portaria do condomínio esperando um Uber. Tem um ponto de ônibus bem na frente. O porteiro do condomínio disse que eu não poderia ficar ali onde eu tava e eu atravessei até o ponto. Tinha várias outras pessoas. Eu sou extremamente desligada e tava ouvindo música com o fone de ouvido. Quando eu vi de canto de olho já foi o clarão de arma de fogo disparando. Virei e todo mundo saiu correndo. Eu caí, machuquei a perna, desloquei o ombro.  

Levantei! Quando virei, vi outras duas pessoas correndo em nossa direção. Vi na hora que atiraram nelas e elas caíram. Eu vi duas pessoas sendo mortas. A outra pessoa baleada já tinha tomado tiro antes de eu perceber o que tava acontecendo. Não vi o bebê.  Na hora, falaram que tinha sido uns caras em uma moto. Mas o que eu vi foi um carro branco. Sou péssima para modelo de carro. Mas era um carro branco. Quem atirou já tava meio que entrando no carro, no banco traseiro. Tinha uma pessoa no volante e a outra atirando entrando no carro.

Uma senhora do meu lado começou a me puxar: “Corre, corre!”. Conseguimos entrar na portaria do condomínio. A gente se abaixou e ficou sem saber se ia ou ficava. O carro foi embora e alguém ligou para a polícia. Começou a  chegar muita viatura da polícia e do Samu. Eles cobriram três corpos.   

Foi aí que falaram que tinha um bebê. Eu não vi esse bebê! Não sei se esse bebê tava no ponto. Eu soube do bebê depois, não vi ele sendo baleado. Perguntaram se o bebê era meu, perguntaram a todo mundo se alguém sabia de quem era o bebê. Colocaram ele na ambulância e levaram. 

O Samu ofereceu atendimento para quem se feriu. Eu fui para o hospital. Uma senhora que tava perto de mim ficou com dor para levantar e a gente ajudou, mas não sei se foi para o médico. Soubemos de um ferido de bala. Ele teria tomado um tiro de raspão, mas depois negaram. Talvez tenha sido o bebê. 

Me deram atestado no hospital, mas eu fui trabalhar no dia seguinte. Melhor do que ficar pensando besteira. Estou sem dormir desde aquele dia. Chego em casa cansada, pego no sono e duas horas depois acordo e não durmo mais. É um inferno!

Eu fiquei muito abalada. Já tinha acontecido a chacina dos Ubers e eu tava muito mexida com essa história. Não é a primeira vez que um tiroteio acontece na minha presença. Passei por uma situação parecida. Anos atrás eu tinha ido no Salvador Shopping e teve uma saidinha bancária. Passou um bandido na moto e o cara do meu lado foi baleado. Fiquei suja de sangue dos pés à cabeça. 

Mesmo com esses dois casos, tenho consciência dos meus privilégios. Sempre morei em lugares relativamente seguros. Não convivo com a violência da cidade diariamente. Eu ali só era a pessoa errada na hora errada. Mesmo assim, em Salvador a gente acaba se acostumando a viver com medo."