‘Eu vou processar a União’, diz Mário Alberto Hirs

Em entrevista ao CORREIO, o desembargador falou sobre as acusações de fraude a precatórios

  • Foto do(a) author(a) Jairo Costa Jr.
  • Jairo Costa Jr.

Publicado em 4 de dezembro de 2017 às 09:23

- Atualizado há um ano

Em um dos gabinetes espalhados pela ala sul do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ), trabalha aquele que é considerado nos corredores do Judiciário estadual como o mais influente desembargador da Corte. Aos 66 anos, 36 deles dedicados à magistratura, Mario Alberto Hirs teve uma trajetória ascendente na carreira. 

Primeiro, ingressou no Ministério Público em 1979. Dois anos depois, passou em um concurso e tomou posse como juiz de direito. Inicialmente, atuou em comarcas distantes da capital - Lençóis, Seabra e Jacobina, até ser transferido para Salvador. Em 2004, já era desembargador. Foi eleito presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) em 2009. Ao encerrar o mandato, alcançou o mais alto degrau da Justiça baiana, quando venceu a disputa pelo comando do TJ, presidido por ele de 2012 a 2013. 

Foi aí que começou o que classifica como a grande via crucis enfrentada por ele na vida. Em abril de 2013, reta final da gestão à frente da Corte, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu sindicância para apurar suspeitas de irregularidade no pagamento de precatórios - dívidas da Fazenda Pública oriundas de decisões judiciais definitivas. Quase sete meses depois, foi afastado da presidência do tribunal por decisão do CNJ, junto com sua antecessora, a desembargadora Telma Britto. Ambos só voltaram ao TJ por força de uma liminar do Supremo. De lá para cá, as denúncias ganharam a imprensa local e nacional. Até que no último dia 7 os dois foram absolvidos pelo CNJ por falta de provas.  Mário Alberto Hirs responde a processo disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) Em entrevista ao CORREIO na segunda-feira passada, cercado por imagens de santos e orixás, Hirs contra-atacou acusadores, atribuiu as denúncias ao seu “temperamento intransigente com poderosos”, negou influência sobre os destinos do TJ, disse que haverá consequências para os responsáveis pelo “linchamento” do qual se diz vítima e que cobrará da União os danos à sua imagem.                             Quatro anos depois de enfrentar acusações graves, de ser alvo de afastamento e processo disciplinar, o senhor foi absolvido  pelo CNJ. O que houve de fato nesse episódio e porque ele tomou tal proporção?  Hoje, com mais tempo, posso dizer que fui muito intransigente, muito duro com o establishment. Em nenhuma hipótese, em nenhum momento, atendi pedidos de absolutamente ninguém. Eu, de verdade, presidi o TJ. Isso teve uma participação importante. Das acusações que se faziam, muitas foram até absurdas; outras, banais. Fui absolvido em todos os casos de precatórios. O voto ou os votos contrários a mim, foram todos por não acatar decisões do CNJ e por manter o desembargador Ailton Silva, aposentado, na função de precatórios. Ailton Silva é um dos homens mais sérios dessa terra. Ele é unanimidade no tribunal. Os pagamentos de precatórios foram todos legais, não tiveram problemas. 

Mas as acusações se basearam em entendimentos legais, desembargador. Havia uma divergência jurisprudencial, de entendimento. Fui meio inclemente no meu entendimento, não abri mão. Existiram até acusações questionando sobre por que eu não cobrava aluguel do Banco do Brasil (na estrutura usada pela instituição dentro da sede do TJ). Isso me foi perguntado em Brasília. Respondi que não cobrava por uma questão ético-moral. O Banco do Brasil nos dava imóveis enormes no interior, nos cedia gratuitamente em comodato para que fossem usados como fórum. Queriam que eu cobrasse uma portinha deles? Eu iria me achar um gângster se exigisse isso do banco.

O senhor disse que foi intransigente com o establishment. A quem se refere?  Eu não vou citar nomes, se é isso que você está querendo.

É dever da imprensa perguntar. E a minha é me poupar. 

Algum desses casos pode vir a lume?  Se você perguntar a qualquer pessoa do TJ, eles vão te dizer os nomes. Não vou te dizer porque seria mera ilação. Tenho certeza, mas não tenho como provar. E só digo o que eu provo.

Dois votos no julgamento que levou à sua absolvição, o do ministro Arnaldo Hossepian e o da ministra Carmen Lúcia, há um reconhecimento de que houve falhas de sua parte. Outros também foram na mesma linha. De que falhas eles estavam falando? Não poderiam ter sido sanadas? Não vejo que falhas são essas. Sabe o que acho? Tenho admiração muito grande pelo ministro João Otávio Noronha (do STJ, conselheiro do CNJ). Estou falando apenas de admiração, não tenho qualquer intimidade com ele. Digamos o seguinte: sou um juiz de carreira, tenho quase 40 anos de magistratura. É muito difícil um colega, seja de qualquer grau da Justiça, fazer crítica a outros magistrados, de desdizer o que um disse antes. A princípio, as acusações contra mim eram pesadas. Chegaram a falar em desvios de mais de R$ 440 milhões, uma maluquice! Nunca paguei nada a ninguém. O secretário da Fazenda, que é o pagador, disse que eu não tinha pago um só centavo. Não houve falha. Os votos falam que tanto o TJ quanto o CNJ cometeram erros nos cálculos de precatórios. Nem o Supremo nem o CNJ eram donos da verdade. Um dizia uma coisa diferente do outro. Eu segui o entendimento do Supremo, o maior tribunal do país.

Tem algum caso específico?  Eu estava sendo julgado por um processo de precatórios em que eu cumpria simplesmente uma decisão do STJ, em mandado de segurança, e o voto, sem discrepância, foi o da ministra Eliana Calmon (hoje aposentada). Cumpri a decisão. Decisão judicial eu cumpro. O impressionante é que fui processado por ter elaborado cálculos errados cumprindo uma decisão do STJ.

Nos bastidores do Judiciário atribui-se à ministra Eliana Calmon tais denúncias.  Isso é você quem está dizendo. Se procurar, vai ver que não denúncia alguma dela. Ela faz alegações, diz publicamente o que quer dizer. Mas não há nenhuma acusação formal dela no processo.  Há uma briga pessoal entre o senhor e a ministra?  Eu sequer a conhecia. A não ser pela televisão ou de vê-la aqui ou ali.

Então as críticas e alegações por parte dela, que duraram bastante tempo, foram feitas gratuitamente? Não sei se foi gratuito ou não. Não vou chegar onde você quer que eu chegue.

Após tanta exposição negativa de seu nome, como se sente hoje já inocentado?  Fui linchado. Mas toda a classe jurídica compreendia de forma diferente. Diziam sempre para mim que eu estava sendo vítima de uma perseguição atroz. Gente que eu nem conhecia pessoalmente. Ocorreu o mesmo com a desembargadora Telma Britto, outra figura que estava comigo na mesma situação. Eu não diria que foi uma coisa gratuita, porque nada é gratuito. Tudo tem uma razão de ser. Porém, o motivo real, juro que desconheço. Eu não puxo o saco de ninguém, como sucessores e antecessores meus fizeram. Isso gera um certo travo, reconheço.   Teve algum reflexo físico e emocional por conta desse processo no CNJ?  Que me lembre, não. Encarei com certa naturalidade. Sou um homem de fé.

Dá para ver pela quantidade de imagens na prateleira atrás do senhor. Isso foram só presentes. Não escondo minha fé inabalável. Um sabia que a verdade viria à tona. Poderia durar 20 anos. E que os acusadores ficariam numa situação perigosa, como acho que estão.

Pensa em processá-los? A eles, não. Mas a União, sim. Vou processar a União.

Sob qual argumento? Tenho uma montoeira de jornais, revistas e todo tipo de material que você puder imaginar. Todos devidamente guardados em um cofre-forte. E vou apresentá-los como prova das sacadilhas imorais que fizeram contra mim. Isso é motivo suficiente para arguir dano moral. Levei sete meses afastado. Tinha certeza de que iria vencer essa causa. Era questão de tempo. O CNJ mudou. As figuras que armaram essa arapuca já tinham ido embora, felizmente. O nível lá hoje é muito melhor. A composição daquela época era muito tirana.

Em que sentido? Político? Acho que sim, também. É difícil fazer uma síntese política dentro de um órgão que tem semelhança com um tribunal. Mas devem existir antipatias, colhidas diretamente ou herdadas porque foram passadas adiante. Como sou intransigente, chato mesmo, em algumas coisas, isso deve ter criado mal estar em relação a mim.

Será que essas antipatias vêm do fato de que o senhor seja considerado atualmente o desembargador mais influente e poderoso do TJ? Poderoso, eu?

Dizem que o senhor fez todos os seus sucessores na presidência do tribunal? Não é verdade. Quem fez o sucessor agora foi a desembargadora Maria do Socorro Santiago. Não trabalhei por ele (o desembargador Gesivaldo Brito, presidente eleito da Corte).

Mas a atual presidente foi o senhor quem fez... Mas são coisas completamente diferentes. Foi ela quem  se fez. Votei nela, é diferente.

Quer dizer que nessa eleição o senhor não trabalhou pessoalmente pelo vencedor, não pediu votos para ele? Não

Tem certeza? Olhe, eu tenho um grupo, um pessoal que vem aqui, que conversa comigo. Esse assunto foi muito discutido, mas a decisão foi da presidente, pode ter certeza. 

Há ingerência política forte no TJ? Em nenhuma hipótese.

Quer dizer que em nenhum momento o governador do estado e seu núcleo de auxiliares mais próximos não conversam com a cúpula do Judiciário sobre o processo eleitoral na Justiça? É claro que conversam. Os poderes são harmônicos e independentes, mas existe uma interdependência entre eles. A máquina pública funciona como um todo. Não quer dizer que o governador de estado ou presidente de tribunal e da Assembleia Legislativa exijam nada. Mas há assuntos que interessam a um poder e a outro. Pensar de outra forma é hipocrisia, utopia. Existe um bom relacionamento, como existe com o prefeito da capital também.

O Judiciário baiano, não de forma geral, vem sendo alvo de críticas pela produtividade, considerada baixa. Como o senhor classifica essas avaliações? No segundo grau, a nota cem, mil. A OAB da Bahia fala em pedir embargo da proposta do tribunal de abrir mais dez vagas de desembargador no Tribunal de Justiça. Não vou emitir juízo de valor. Mas eles é quem dizem que no TJ é dez. Eu, por exemplo, não tenho nenhum processo parado. Pode procurar. Mas no primeiro grau, há problemas. Há muito tempo não se faz concurso para juiz na Bahia. E quando tem concurso, quando damos posse a todos os novos magistrados, mais vagas surgem para serem ocupadas. É uma carência eterna. Muito prior é a falta de serventuários. Os juízes se desdobram, muitas vezes, para dar conta da demanda. 

Mas vemos gabinetes de desembargadores lotados... De desembargadores, não. A média é oito em cada equipe e eles são todos aproveitados, posso garantir. 

O Judiciário é oneroso, desembargador. Não poderia ser enxugado, sobretudo, diante de um ambiente de crise? Talvez tenha gente demais? Acho que não. Talvez tenha gente mal aproveitada, diria. Existe muito trabalho aqui.

Voltando à novela judicial que o senhor enfrentou, estamos mais perto ou mais longe do cenário descrito por Franz Kafka em O Processo? Mais perto. Eu li o livro. Vamos chegar ao ponto em que, da mesma forma como ocorreu com o protagonista da obra (Joseph K.), o sujeito vai ser processado e condenado sem saber exatamente o motivo pelo qual foi acusado. Não estamos muito distantes daquela realidade descrita por Kafka, sem sombra de dúvidas.