Exaustos psicologicamente, profissionais da saúde abandonam a linha de frente

Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde disse ao CORREIO que esse 'é um problema grave' que pode levar a déficit de profissionais disponíveis

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  • Fernanda Santana

Publicado em 7 de março de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Aos 33 anos, Mayara da Paixão não é a mulher de antes, ela conta, enquanto se conjuga no passado e no presente. Estável antes, ansiosa hoje. Um caminho de tensão separa uma da outra, aquela de frente para a vida, esta de cara para a morte. As famílias perdiam seus queridos para o coronavírus e Mayara também chorava, escondida. Exausta, a técnica de Enfermagem deixou a linha de frente contra a covid-19, como têm feito outros profissionais.

Dos sete meses na linha de frente, Mayara lembra do medo de contaminar familiares, da tristeza e da culpa, pois depois que o marido se infectou, ela tomou para si a responsabilidade do contágio. 

Todos os dias, era dor no horizonte. Nem quando ia dormir ela tinha silêncio. Podia jurar que ouvia o barulho dos equipamentos aos quais estavam ligados os pacientes, horas antes. Só dormia se ingerisse o remédio prescrito por um psiquiatra.  

Num momento de risco de colapso, o ambiente fica ainda mais propício ao aparecimento de problemas psíquicos, o que pode comprometer a necessidade de contratação de profissionais, com a abertura de novos leitos para atender à demanda crescente.“Muita gente não quer mais trabalhar na ala covid devido à exaustão mental. É um problema grave. Ninguém aqui está brincando de ser superhomem”, avalia o presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, Carlos Lula.     As secretarias de Saúde estadual da Bahia, municipal de Salvador e a Associação de Hospitais e Serviços de Saúde da Bahia, que representa as unidades privadas, reconheceram a dificuldade para encontrar equipes para o front. Uma das dificuldades, opina Carlos Lula, vem da "exaustão psicológica dos profissionais". Do início da pandemia até aqui, são 43.353 profissionais de saúde infectados pelo coronavírus na Bahia.

Os centros de acolhimento criados pelo Estado e pelo município de Salvador atenderam, separadamente, 2.591 pessoas com sintomas de transtornos psicológicos desde abril de 2020 - o Estado tem 40 mil profissionais da saúde e o município 11 mil.

Pelo menos 64 desses trabalhadores precisaram de atendimento psiquiátrico, por problemas como síndrome do pânico. As unidades privadas não divulgam quantos atendimentos prestaram.  

É “um número significativo”, afirma Bruno Guimarães, diretor de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do estado da Bahia. “A quantidade deve ser maior”, destaca. Nem a rede privada, nem a pública informaram quantos profissionais estão afastados. 

O adoecimento mental durante a pandemia é confirmado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Sem distinção por estado ou ocupação, o número de brasileiros que recebem auxílio por problemas de ordem mental saiu de 213 mil em 2019, para 285 mil em 2020. Os dados podem refletir a pandemia, diz o INSS. 

A Suécia, um dos países que não adotou o lockdown e está mergulhado no caos da pandemia, enfrenta uma debandada dos profissionais de saúde, sobrecarregados, mostra a Associação Sueca de Profissionais de Saúde. Os conselhos federais de Medicina e Enfermagem afirmam que há profissionais o suficiente com registro no Brasil para atuar na pandemia

"Não tinha mais estrutura para fazer isso": transtorno pós-covid

“Desabafei com uma colega médica e ela disse que eu precisava cuidar da minha saúde. Não tinha mais estrutura para fazer isso”, conta Mayara, que deixou o hospital onde trabalhava em novembro do ano passado. Mas, as crises de ansiedade permanecem.

O diagnóstico dela, avaliou um psiquiatra, é “transtorno de ansiedade pós-covid” - um transtorno desencadeado por qualquer situação traumática. Hoje, ela trabalha numa clínica de imagem e num hospital não dedicado ao coronavírus.  Técnica de Enfermagem desenvolveu transtorno de ansiedade e chega a precisar de medicamentos para dormir (Foto: Marina Silva/CORREIO) O estresse e a lida com situações limites - como as enfrentadas por Mayara - sempre existiram entre profissionais da saúde, comenta Jaqueline Simhon, psicóloga hospitalar há 17 anos. O adicional é a exaustão extrema, que pode tornar transtornos psíquicos mais frequentes. “A desorganização da rotina, o medo, o estresse e a insegurança estão agravados. A equipe está cansada, mas continua, porque a pandemia não acabou”, explica ela, que integra o Serviço de Psicologia do Hospital Jorge Valente, com projetos voltados para o acolhimento dos funcionários.Eles podem nunca ter apresentados sintomas de transtornos ou guardar, na bagagem de vida, traumas - como todos nós. Situações limites, como esta, podem desencadear novos traumas ou reeditar outros, do passado. Cada um reagirá de uma forma. O tratamento empregado, portanto depende do diagnóstico encontrado e pode incluir sessões de terapia e medicação.

Simhon atendeu uma pessoa que precisou ser afastada da linha de frente e remanejada de setor, tão intensa estava a ansiedade dela. A diferença de uma ansiedade “normal” para uma doença está na intensidade do sintoma, no quanto ele impacta a vida. Durante a pandemia, algumas unidades têm investido no acolhimento psicológico dos profissionais de saúde, tanto quanto a de um paciente. “A gente considera, aqui, que [cuidar da saúde mental] é um fator de proteção”, define a psicóloga. 

Relatos de depressão, ansiedade e angústica são "recorrentes"

Antes de dormir, um remédio para desanuviar a mente, porque a ansiedade pairava no ar, ao pensar no trabalho do dia seguinte, com pacientes internados com covid-19. Em novembro, o enfermeiro Alan Martins, 32, decidiu deixar a linha de frente. “Desgaste mental, físico, perda de colega pela doença, tudo isso me fez refletir o que realmente vale a pena”, compartilha Alan, que hoje trabalha em uma unidade de neurologia.

Quase um ano depois do início da pandemia, e do primeiro caso de coronavírus confirmado na Bahia, o aspecto da saúde mental dos profissionais se tornou um dos pontos de principal interesse dos pesquisadores. Monique Esperidião, psicóloga, doutora em Saúde Pública e professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba).“A literatura mostra que profissionais de saúde que cuidam de pacientes com a doença apresentaram de forma mais significativa depressão, ansiedade, insônia e angústia”, explica ela, integrante Rede CoVida, ligada à Fiocruz, dedicada a estudar aos aspectos da saúde psíquica dos profissionais de saúdeOs relatos de sintomas como ansiedade, depressão, perda do sono e medo se tornaram “recorrentes”, diz Esperidião. A incerteza sobre a duração da crise, a falta de terapias comprovadas, a carga de trabalho extenuante e o sentimento de incapacidade são alguns dos agravantes.

Historicamente, as profissões da área de saúde - 14 formalizadas no Brasil - são envelopadas no lugar do cuidado e da atenção. Mas, é preciso olhar além da “romantização” desses trabalhadores, afirma Carmen Teixeira, médica, doutora em Saúde Pública e  professora de Ufba. E é esse um dos reflexos da pandemia - olhar essas pessoas além do idealizado."Para pensar a questão mental desses trabalhadores, não tem como dissociar os indicadores sociais”, diz ela, que pesquisa áreas como a gestão de sistema de saúde e a formação profissional em Saúde.Enxergar a vulnerabilidade econômica de alguns desses profissionais, por exemplo, mostra o quanto os marcadores sociais também impactam a saúde mental de um indivíduo, já fragilizado por situações traumáticas diárias, continua Teixeira.“Hospitais são estruturas muito complexas. As relações que acontecem ali também têm repercussão direta na saúde mental, ainda mais nesse contexto de exaustão”, frisa.Dos profissionais de saúde que foram atendidos pelo núcleo de acolhimento psicológico estadual, com algum sintoma de transtorno psicológico, os técnicos e auxiliares de Enfermagem - com salário de R$ 1,2 mil por vínculo, em média - respondem por 33% dos que precisaram de psiquiatras. Não é por acaso.

Exaustão pode levar a erros 

A exaustão pode ser danosa, também, no próprio contexto clínico. “Começam a sair alguns trabalhos, mas sem estatísticas precisa, que mostram erros de medicação, atraso de diagnóstico e tratamento”, enumera José Branco, infectologista e presidente do Instituto Brasileiro para Segurança do paciente. A pandemia, ele diz, traz de volta o tema da segurança do pacientepara a agenda da saúde. 

O prolongamento de uma jornada de trabalho, junto a todos os outros ingredientes da exaustão, explica o especialista em segurança do paciente pela Universidade Nova de Lisboa, é fundamental para entender que os erros são, sim, humanos, mas que é preciso amparar profissionais como médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos, para evitar ainda mais desgastes.

Com afastamento de profissionais por infecção pela covid-19 e/ou transtornos psíquicos e cada vez mais pacientes internados, tornaram-se rotineiras longas jornadas de trabalho - de 24, 36 horas e assim por diante. Os profissionais, conta Ivan Paiva, coordenador do Serviço Móvel de Urgência, precisam “dobrar, aumentam cargas de trabalhando, atuando em um, dois três lugares”. Terreno fértil para erros, relata uma enfermeira ouvida, sob anonimato, pelo CORREIO.“Preparando uma medicação, já misturei tudo, mas percebi e pude refazer. Uma colega confundiu a coleta de sangue de nove pacientes e precisamos refazer”, lembra.Há sete anos, os hospitais são obrigados a notificar qualquer caso de efeito adverso, por meio do Núcleo de Segurança do Paciente. Em 2019, foram 6.178 incidentes registrados, afirmou a Sesab. Em 2020, foram 6.314 - 136 a mais. Neste ano, 812 até o momento. Os desdobramentos e porquês desses casos não são divulgados.“Embora seja lei notificar, na pandemia, houve redimensionamento de muita gente e os números podem não ser fiéis à realidade”, contrapõe BrancoDepois da pandemia, ele acredita que haverá um avanço na cultura da segurança do paciente e da forma que a exaustão será relacionada a ela. “Daremos um salto quando entendermos os efeitos adversos que poderiam ser prevenidos”, opina. Outro avanço virá, acrescenta o médico, quando a saúde mental dos profissionais de saúde for finalmente vista como uma demanda urgente - e de saúde pública.