Faltou a graça delas: pandemia impede baianas de lavarem escadarias do Bonfim

Mesmo sem poder subir a Colina Sagrada, devotos do candomblé cumpriram obrigações

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 15 de janeiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

As baianas que têm por tradição lavar as escadarias da Igreja do Bonfim botam fé na festa de 2022. Para muitas, pela  primeira vez desde que começaram a participar da festa, esse ano não foi possível realizar o ato simbólico de lavar as escadas da igreja na segunda quinta-feira de janeiro devido a  covid-19.

“Eu já chorei muito hoje. Sempre tive vontade de participar da lavagem, mas só há 10 anos consegui realizar o sonho. Eu queria estar lá hoje (nesta quinta-feira, 14). Apenas acompanhar na televisão dá uma dor no coração. Me emociono também por causa das colegas baianas que morreram de covid-19. Ainda não caiu a ficha de que isso está realmente acontecendo”, lamentou Tailane Barbosa dos Santos, 45 anos, conhecida como Tati do Acarajé em Campinas de Pirajá.  

O jeito encontrado por ela foi fazer sua oração em casa, mas a vontade mesmo era estar na Colina Sagrada. “A verdade é que eu consegui sim rezar em casa. Estou com saúde, trabalhando, então só tenho o que agradecer. Mas é bem diferente do que ir para lá, não foi a mesma coisa”, disse. 

Para não deixar a devoção passar sem nenhuma ação, a baiana decidiu que vai visitar o santuário nos próximos dias. “Eu queria ir, mas não fui por obediência à associação que realmente pediu para a gente não se expor. Eu também sou asmática, faço parte do grupo de risco da doença. Mas quero visitar a Colina Sagrada nesse domingo ou na segunda, quando tiver menos aglomeração”, completou. Tati vai ao Bonfim há 10 anos, mas este ano seguiu recomendação para não se expor ao vírus (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Já a mãe de santo Tânia Pereira de Jesus, 64, pretende ir à Colina Sagrada assim que ela estiver aberta ao público. “Preciso fazer minha oração. Participar desse evento é muito bom, muito forte. Sabemos que a igreja católica não é do axé, mas eu tiro o chapéu para os nossos ancestrais, que foram inteligentes em fazer essa associação que nos deu a liberdade de viver a nossa fé hoje. Ir até o Bonfim é saudar os nossos ancestrais”, explicou. 

Tania disse também que essa quinta-feira foi um dia muito triste para todo o povo do axé. “Quando eu vi e ouvi o jornal, me bateu uma tristeza tão grande. Eu fiquei toda arrepiada e chorei com minha filha. É uma tristeza muito grande. A pandemia tira o nosso sossego, nossa liberdade. É como se fosse uma punição que estamos passando. E a humanidade não está entendendo que é um período para pararmos, ficarmos quietos e raciocinar”, disse.  

Mesmo com o desejo de ter participado da festa, as baianas concordaram com a proibição da lavagem em 2021 por causa da pandemia. “Hoje foi um período muito triste para a Bahia. Ficou marcado na história. Até as crianças, quando tiverem adultas vão lembrar desse dia triste”, completou Tânia.    A mãe de santo Tânia disse que pretende ir ao Bonfim assim que a Colina Sagrada reabrir para o público (Foto: Nara Gentil/CORREIO) Fé   

Mesmo sem acesso à igreja, houve mães e pais de santo que estiveram na Baixa do Bonfim para cumprir suas obrigações. Um deles, o Pai William de Oxalá, desde 1992 anda descalço da igreja da Conceição da Praia até a basílica. “É uma promessa que eu pago anualmente. Normalmente demoro bastante para chegar, mas dessa vez só durou uma hora o percurso”, contou.

“Fica uma mistura de saudade e tristeza. Esse é um local sagrado para as pessoas que tem fé e a precisam renovar todo ano. Acho que eles deveriam encontrar algum modo do povo de axé ter acesso ao espaço e fazer a lavagem”, defendeu. Por não poder realizar a limpeza das escadarias, o babalorixá apenas depositou flores numa árvore sagrada do espaço. “É a minha devoção tendo que ser adaptada”, afirmou.  

Já a mãe de santo Mãe Nelma de Oyá chegou na Colina Sagrada no horário tradicional que chegaria caso houvesse a Lavagem do Bonfim, por volta das 11h. Ela não aprovou a decisão de fecharem a Colina Sagrada. “Eu tenho 57 anos e venho desde os 13. Nunca imaginei viver uma coisa dessas. O que está acontecendo hoje é um absurdo. Tudo bem não abrir a igreja, pois isso já é costume, mas proibir a baiana de lavar a escadaria é demais”, reclamou. 

Mãe Nelma tem consciência de que, caso a lavagem fosse permitida, haveria mais risco de contaminação pela covid-19. Mesmo assim ela defende que fosse mantida a tradição. “É aglomeração? É. Não pode ter aglomeração? Não pode. Tá numa pandemia? Tá. Mas do mesmo jeito que colocaram os policiais para impedir que a gente não entrasse, eles poderiam estar fazendo um controle de acesso, pelo menos das baianas, de irem de 10 em 10, 20 em 20, fazerem sua devoção”, defendeu.  

Nas religiões de matriz africana, o Senhor do Bonfim é associado a Oxalá. Segundo relatos históricos, a lavagem do Bonfim começou a partir dos moradores da região que tinham o objetivo de lavar a igreja para deixá-la pronta para a Festa do Bonfim, que só acontece mesmo no domingo. Só que o evento tomou proporções maiores do que o próprio dia festivo, ajudado pelo sincretismo religioso.  

A mãe de santo carioca Selma do Omolu, 78, participa há 40 anos da lavagem do Bonfim. Todo ano ela vem do Rio de Janeiro e, mesmo com a pandemia, decidiu vir em 2021. “É a fé. Não dava para ficar de longe. Temos que respeitar os ensinamentos dos que fizeram a medicina, mas a fé espiritual é muito grande”, afirmou a umbandista, 

Mãe Selma não pôde caminhar até a Colina Sagrada por causa da idade, mas ficou na frente da igreja da Conceição da Praia para fazer sua oração quando a imagem do Senhor do Bonfim passou por lá.  

* Com a orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo