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Fantasmas numa terra estranha

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 21 de novembro de 2022 às 05:06

. Crédito: .

Circula na internet um vídeo de 2019, que mostra uma senhora bem idosa sentada numa cadeira de rodas. Ela faz movimentos de balé com os braços, enquanto escuta O Lago dos Cisnes, tema clássico de Tchaikovsky. São os mesmos movimentos que fazia décadas antes, em cima de um palco. Seu nome é Marta González Saldaña e foi bailarina com algum destaque na Nova York dos anos 60. Ela morreu há dois anos num abrigo para idosos na Espanha. Sofria do Mal de Alzheimer e provavelmente deixou a vida sem ter a menor ideia de quem foi ou do que fez.

O momento em que Marta, já com a doença em estágio avançado, reage à melodia de Tchaikovsky é comovente. Os movimentos, suaves e delicados, soam naturais como se ela tivesse nascido com eles. Através de uma experiência sensorial, foi possível resgatar uma centelha derradeira em meio ao breu. Imagino a música percorrendo florestas espessas de escuridão em busca de uma clareira onde pudesse se instalar. Por um instante essa clareira surgiu, para em seguida ser novamente tragada pela mata densa da inconsciência.

O que sonham os que sofrem de Alzheimer? O que se passa ali dentro? O que resta de memória, afeto e compreensão? Em A Vida Brinca Muito Comigo, romance do israelense David Grossman que estou lendo, a personagem Nina é diagnosticada com o mal. Em um doloroso acerto de contas com a família da qual sempre fugiu, ela busca uma forma de perpetuar-se para além das próprias limitações, captando depoimentos em vídeo para a Nina do futuro. Como se assim conseguisse reprimir o avanço da demência.

Em Os Anos, uma Annie Ernaux já no terço final da vida discorre: “E, de certo modo, quando as palavras, imagens, objetos e pessoas se apagam, ela já prevê, senão a morte, ao menos o estado em que estará um dia, entregue, como as pessoas muito idosas, à contemplação – mais ou menos nebulosa por causa da ‘degeneração macular relacionada à idade’ – das árvores, de filhos e netos, despida de toda cultura e toda história, a sua e a do mundo, ou estará em um estado ‘alzheimeriano’, não sabendo mais qual o dia nem o mês ou estação do ano em que se encontra”.

Como a autora francesa, imagino a vida despida de tudo que edificamos. Nosso rol de paixões, os livros que nos engrandeceram, os países que conhecemos, a lua nascendo em uma noite particularmente feliz, os diálogos acalorados que travamos numa mesa de bar, as escolhas erradas ou certas que nos empurraram até o presente, um animal que acariciamos, a fagulha inigualável da primeira experiência sexual. Imagino, com um leve desespero, tudo isso envolto em bruma.

Ernaux divaga sobre isso em outro trecho de Os Anos: “Um sentimento de urgência substituiu o sentimento de futuro e é ele que a atormenta agora. Ela teme que o envelhecimento faça a sua memória voltar a ser nublada e silenciosa, como a que tinha quando era bem criança – momento que nunca voltará a se lembrar”. É o que nos espera, voltar à inconsciência aquosa e primeva? Seria a linha do tempo um círculo?

O que sentiremos nesse momento em que nossa mente se anuviar por completo? Ou em que o fardo maravilhoso de existir dará lugar ao nada? Seria como pensa Borges? “O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte, quando a sorte livrar-nos do triste hábito de ser alguém e do peso do universo.” Ou aquilo que sente Mayol, personagem central de A Viagem Vertical, de Enrique Vila-Matas, no seu momento derradeiro:

“Deixando-se levar por sua excepcional capacidade para afundar, sentiu-se a própria Atlântida, no breve espaço de uma noite, tremendo em meio a terremotos e inundações e, sem mais ouvir a estranha sardana, iniciando sua última descida, numa imersão muito vertical, afundando em sua própria vertigem, chegando ao país onde as coisas não têm nome e onde não existem deuses, não existem homens, não existe mundo, só o abismo do fundo”.

Talvez eu esteja confundindo um pouco as coisas, como de costume. O fim da consciência não significa necessariamente o fim da existência. Ou significa? Como uma existência pode prescindir da memória? A Marta que baila ao som de O Lago dos Cisnes na cadeira de rodas ainda é Marta? Após o Alzheimer, o que realmente permaneceu dela além da carapaça, do invólucro carcomido pelas décadas? Que estranhos nos tornamos, tormento de familiares, torrentes de obscuridade, vagando como fantasmas numa terra que desconhecemos?