Faroeste da Bahia: pistoleiros tiram o sono e as terras de agricultores no Oeste

Mesmo com a Operação Faroeste, muita coisa se mantém igual: agronegócio continua sendo acusado de ameaçar as vidas e o sustento de famílias

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 2 de outubro de 2021 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: AIBA/Divulgação
Carro alugado por famílias recebeu 8 tiros por Foto: Reprodução/CPT-BA

Pela manhã, uma cancela e um mata-burros de uso coletivo apareceram destruídos e, para os moradores de um território em conflito, isso é um recado claro. Ameaçada diariamente, a comunidade tradicional do Capão Modesto, no município de Correntina, no Oeste da Bahia, vem denunciando as ousadias de empresários grileiros que tentam inviabilizar a vida ali, onde cerca de 30 famílias afirmam estar há mais de 300 anos.

A cerca de 300 km dali, fica Formosa do Rio Preto, maior cidade da Bahia e cenário de um conflito recente que levou agricultores a fazerem um protesto, no início deste mês, pedindo punição aos fazendeiros e pistoleiros que estariam ligados à Canabrava Agropecuária por um atentado no dia 3 de setembro. 

Naquela ocasião, quatro caminhonetes, com quase 20 homens encapuzados, alguns deles armados, teriam impedido moradores de acessar roças da comunidade de São Marcelo, dando oito tiros contra um carro alugado pelas famílias. Por sorte, ninguém ficou ferido, mas os atiradores ainda derrubaram cinco casas e tocaram fogo em estacas.

“Ocupamos essa área desde os nossos avós, plantando mandioca e criando um pouco de gado. Foi por volta de 2004 que eles chegaram se dizendo donos dessas terras. Dessa vez, sem aviso nenhum, vieram atirando quando famílias estavam indo para as roças. Nos dias seguintes, tivemos que fazer um mutirão para ter segurança em voltar lá. As formas de eles atacarem estão mais violentas. Faz pouco, perdi meu pai para a covid-19 e estamos nessa luta. A gente resiste porque não tem para onde ir, e eu quero viver aqui”, diz Aurélio Ferreira, 26, que mora por lá com a mãe, dois irmãos e outras 80 famílias. 

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Durante todo o ano de 2020, 153 conflitos no campo, envolvendo disputa por terra e água, foram registrados na Bahia pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja Católica. Em toda a série histórica, iniciada há 35 anos, foram registrados 827 conflitos por aqui, colocando o território baiano em terceiro lugar no ranking, atrás apenas de Maranhão e Pará. Camponeses de fundo e fecho de pasto foram vítimas de 30% desses conflitos no estado. Só no levantamento mais recente, foram registradas 15 ameaças de morte contra grupos tradicionais, que incluem quilombolas, indígenas, geraizeiros e sem terras. 

De 2009 até o ano passado, quase 30 mil famílias baianas denunciaram à CPT ocorrências de grilagem em suas terras. O número coloca o estado como recordista no país em relação a essas violências contra a ocupação e posse de terrenos: 21% dos casos de grilagem do Brasil foram computados na Bahia. Há quatro meses, o empresário Paulo Ribas Grendene foi assassinado a tiros em Barreiras, após denunciar um esquema de grilagem investigado na Operação Faroeste, que mirou magistrados do Tribunal de Justiça da Bahia.

Combo de problemas   Não bastassem a corrupção e os conflitos por terra e água, o Oeste do estado ainda sofre por outras mazelas, como formação de milícias armadas, incêndios criminosos e naturais, agravamento da seca, forte desmatamento do Cerrado e acusações de negligência dos governos, estadual e federal, em prevenir e solucionar as disputas. Todo esse clima faz com que a comparação do território com um faroeste não seja exagero.

"Essa região sempre foi abandonada no sentido de olhar do poder público. O agronegócio fazia suas regras, a institucionalidade era baixa, com poucos juízes e delegacias. Hoje, há um modus operandi de grilagem que a Operação Faroeste revelou, com juízes suspeitos de legitimar fraudes cartoriais. Mas, mesmo com a Faroeste, sentimos que muita coisa continua igual", diz o advogado Maurício Correia, membro da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR), que presta assessoria jurídica para os moradores do Capão Modesto, em Correntina.

O advogado que defende a comunidade de fundo de pasto explica que as famílias usam o território de forma comunitária, criando cabeças de gado, colhendo frutas, raízes e leguminosas. O espaço é usado, às vezes, por quem não necessariamente mora ali, mas usa as pastagens e os leitos dos rios Correntina e Santo Antônio.

Grilagem verde

Empreendimentos agropecuários passaram a se apropriar de terras onde vivem pequenos agricultores para transformá-las em reservas ambientais — prática apelidada de grilagem verde, já que, por lei, estes grandes negócios têm que ter parte do terreno preservado. Os grileiros, então, passaram a forjar títulos de terras, comprando documentos por meio de fraudes cartoriais.

Em 2012, quando veio a possibilidade de se fazer reservas, prevista no Código Florestal, os grandes proprietários entraram numa corrida por áreas para grilagem, indo em busca de documentos de antigas heranças. No entanto, ainda segundo Correia, as comunidades que vivem ali há décadas têm preferência na regularização das terras, mas naquela época o estado não teria agido nesse sentido.

Em 2014, por exemplo, fazendeiros de Correntina começaram a reivindicar uma área como reserva ambiental, afirmando que as comunidades não podiam criar animais ali. O portal De Olho nos Ruralistas aponta Luiz Carlos Bergamashi, presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa), como um dos principais acusados de grilagem na área, nos fechos do Capão Modesto, Porcos, Guará e Pombas.

Enquanto permanece o impasse se é reserva ambiental ou território tradicional, ativistas da causa agrária observam que a expansão do agronegócio passou a atingir povos que nunca tiveram a preocupação de ter título de terras e que não tiveram suporte do estado para regularizar essa situação ao longo dos anos.

“Os grandes produtores rurais chegam e vão cercando, afetando o modo de vida, muitas vezes com a conivência do estado. Comecei a atuar neste tipo de demanda em 2019 e, ao que me parece, as pessoas perderam a vergonha de intimidar e ameaçar. Saem mandando recados em terras indígenas: ‘Olha, as coisas mudaram, agora temos apoio do governo [federal]'", narra Marcelo Bloizi, advogado e professor da Faculdade Maria Milza (Famam).

Os conflitos se arrastam por décadas e Bloizi explica que essas situações costumam demorar de ser solucionadas, basicamente por quatro razões: faltam recursos humanos para os órgãos investigarem esses casos, os policiais tendem a ser coniventes e até mesmo facilitar o lado dos latifundiários, existe corrupção nos cartórios e judiciário e há venda nos olhos dos governos para os dramas da agricultura familiar.

Agente da CPT na região do município de Barra, no limite com o Oeste, Carivaldo Ferreira atua há 20 anos com comunidades e afirma que essas populações aprenderam a resistir, que não aceitam mais serem enxotadas. O problema permanente, no entanto, são “longas noites sem dormir”, já que as ameaças são contínuas. “As pessoas estão conscientes dos seus direitos sobre a terra, mas fica essa insegurança, principalmente entre os jovens: ‘Será que terei direito às terras que toda vida foram dos meus pais?’”, expõe.

‘Exterminadores do futuro’

Nesses impasses insolucionados, vai sumindo o Cerrado: a Bahia quintuplicou o uso desse solo para a agricultura nas últimas três décadas e é o estado campeão no aumento relativo de área de cultivo nesse bioma, segundo dados da iniciativa Mapbiomas. Considerado a savana mais biodiversa do mundo, quase 20% da vegetação nativa do Cerrado foi perdida de 1985 a 2020 e, hoje, 44% dele está ocupado pela agropecuária. 

Com vasto histórico de crimes ambientais, o conglomerado agrícola Condomínio Estrondo, em Formosa do Rio Preto, recebeu uma liberação do Instituto do Meio Ambiente da Bahia (Inema) para iniciar, este ano, um desmatamento de quase 25 mil hectares, uma área maior do que quatro vezes a cidade de Lauro de Freitas. A retirada da vegetação já começou, conforme denúncia do Greenpeace. O Inema foi procurado para explicar detalhes da liberação, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A Delfin Rio, empresa administradora do Condomínio Estrondo, comunicou que não existe qualquer documento que legitime a reivindicação de que as terras pertencem aos ribeirinhos do vale do Rio Preto. Segundo eles, o que existe hoje é uma decisão que define a margem direita do rio como área provisória dos ribeirinhos. A Estrondo diz que esses moradores invadiram cerca de 10% da propriedade da empresa.   O austríaco Martin Mayr, coordenador da Agência 10envolvimento, que há anos dá suporte às comunidades tradicionais em conflito com a Estrondo, relata que esta empresa instituiu guaritas ao redor das fazendas, com seguranças armados que intimidam a circulação de moradores entre as localidades. A Delfin Rio diz gerar 4 mil empregos e é responsável por 4% de toda a produção de soja, milho, feijão e algodão do Oeste.

“O que vemos é que o setor do agronegócio recebe muitos aplausos pelo governo atual, incentivos, e praticamente nenhuma crítica. Eles têm seus merecimentos, mas o governo deveria olhar o bem estar da sociedade toda, enxergar que isso também trouxe problemas. Com o governo estadual, nossa decepção é que é também muito liberal com desmatamento e eles deveriam prevenir para que conflitos não aconteçam porque omissão causa vítimas”, diz ele.

Entidade diz que autoridades devem punir crimes

Em nota, a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) afirmou que eventuais atos ilícitos devem ser punidos pelas autoridades responsáveis, mas que isso não macula o “trabalho sério que vem sendo feito pela cotonicultura na Bahia”. A entidade acrescentou, ainda, que as acusações contra o seu presidente, Luiz Bergamashi, carecem de lastro comprobatório, e que a Abapa atua pelo coletivo e não faz defesa particular dele, “embora estejam certos da sua inocência”. 

Por fim, a associação disse que desconhece qualquer tipo de “avanço contra camponeses”, mas se preocupa com a existência dos conflitos no campo e espera que as autoridades competentes possam solucioná-los “da melhor e mais célere forma possível”.

O Governo da Bahia disse que acelerou o processo de regularização fundiária a partir de 2017 na região Oeste, atendendo 2.000 áreas da agricultura familiar em 16 cidades. Há dois anos, a administração contratou ONGs para regularizar áreas coletivas de fundo e fecho de pasto em quatro cidades. 

A Secretaria de Promoção à Igualdade Racial (Sepromi) disse que participa de uma força tarefa que colhe informações através de escuta in loco para produzir relatórios a fim de ajudar o governo na medição dos conflitos entre as comunidades tradicionais e o Condomínio Estrondo.

Até então, a Sepromi tem 41 comunidades de fundo e fecho de pasto certificadas no Oeste, nas cidades de Buritirama, Coribe, Correntina, Jaborandi e Santa Maria da Vitória. Procurada por e-mail e telefone, a Canabrava Agropecuária não respondeu à solicitação de posicionamento sobre o caso da comunidade de São Marcelo, em Formosa.

Já o Ministério Público da Bahia informou que, há dez anos, acompanha essas questões através da Promotoria Regional Ambiental de Barreiras. Segundo o órgão, com base em estudos de inquéritos instaurados, uma decisão liminar foi conseguida para garantir a permanência de moradores ribeirinhos em quase 40 mil hectares de terras em Formosa do Rio Preto.