Feira com história: comércio em São Joaquim começou com pescadores no século 19

Com o passar dos anos, Feira de São Joaquim se transformou para continuar sendo um entreposto regional entre Salvador e interior

Publicado em 23 de maio de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Jorge Jesus/Arquivo CORREIO

De frente pro mar da Baía de Todos-os-Santos, no meio do caminho entre o hoje bairro do Comércio e a Calçada, os meninos órfãos da Casa Pia de São Joaquim se esbaldavam: era naquelas águas, logo ali em frente, que os garotos costumavam tomar banho. Não por acaso, o lugar passou a ser chamado, no início do século XIX, de Água de Meninos. Os órfãos já não tomam banho naquelas águas, mas o comércio que passou a despontar ainda na colônia, favorecido pela presença do mar e de um atracadouro, cresceu. Da pequena venda de um artigo ou outro, virou feira – a maior e mais importante da capital.

Hoje, já não se passa mais pela borda da Avenida Engenheiro Oscar Pontes, na Cidade Baixa, sem que os olhos, o olfato e a memória afetiva do soteropolitano acusem a proximidade da Feira de São Joaquim, uma espécie de ‘entidade’ cultural, filosófica, religiosa e, claro, um referencial de abastecimento. Quase todo mundo vai ou pelo menos tem vontade de ir à feira – e ia, antes do isolamento social provocado pela pandemia.

A dona de casa Edleuza dos Santos Barbosa, 43 anos, conhecida na Ribeira, onde mora, como Cique, tem uma relação familiar com a feira: desde “piveta” lembra, era arrastada para as vielas de São Joaquim pela mãe, dona Herondina – ou Bibi – para comprar goma da Bahia. “Minha mãe trabalhava muito com esse tipo de goma”, lembra Cique, que confessa que ia para a missão meio a contragosto. Mesmo depois que dona Bibi faleceu, a filha segue frequentadora. Costuma dizer que anda por lá de trás pra frente, com os olhos fechados.“Pra mim, a melhor feira que tem é a Feira de São Joaquim. Tem de tudo: tem bomboniere, casas de orixás, frutas, verduras com preço mais em conta. Tudo que você procura, tudo que você quiser, você encontra na Feira de São Joaquim”, defende a cliente, que conhece os feirantes e faz amizade por onde passa.Afeto Bem capaz de conhecer seu Barbudo, vendedor de ervas, Márcio, o cara dos sucos, ou a senhora evangélica que vende feijão vestida de preto da cabeça aos pés – figuras lembradas pela cozinheira Katia Najara, 49 anos, empresária e chef do Pitéu_Cozinhafetiva. Katia quase não vê o tempo passar ao falar do lugar que frequenta há mais de 20 anos, praticamente o mesmo tempo em que se entende cozinheira profissional.

“Minha relação com a feira é mais afetiva do que comercial. Eu gosto de fazer compras lá porque eu sempre saio muito mais rica, sempre tem alguém, um novo personagem, uma nova história, um novo retrato que eu tiro na minha memória, porque a feira é muito rica e esteticamente muito linda. Um retrato do nosso povo preto e pobre, retrato da África aqui dentro também e um lugar onde eu posso comprar tudo da culinária aqui do nosso território de identidade e além. Todos os sabores da Bahia, a gente encontra na Feira de São Joaquim”, garante.

A feira é parte tão presente da cidade que, para os mais jovens, há uma sensação de que ela sempre existiu. Mas, na verdade, o lugar não nasceu, séculos atrás, exatamente como tal – não nos moldes e na dimensão que existe hoje. Desde 2012, a feira passa por uma obra de requalificação do governo do estado. Este ano, a prefeitura começou uma obra de pavimentação. Mas, para frequentadores, a força do lugar independe das intervenções. Hortaliças, roupas, tecidos, pescado... São Joaquim sempre teve um pouco de tudo (Foto: Carlos Catela/Arquivo CORREIO) Ela tem a própria história. A estrutura, à beira-mar, com um atracadouro por onde chegavam saveiros do Recôncavo, favoreceu o surgimento de algum comércio por ali há séculos. Mas a feira, mesmo, que antes se chamava Feira de Água de Meninos, é coisa muito mais recente – data de 1959. Em 1964, foi totalmente destruída por um incêndio e, logo ao lado, foi reerguida na virada da década de 1960 para 1970, desta vez batizada de São Joaquim.

De tudo um pouco “Por conta de sua proximidade com o mar, de atracadouro para embarcações, com o passar do tempo, ainda na Colônia, começou a se juntar naquela região, segundo a descrição da época, pescadores, vendedores”, conta o historiador Rafael Dantas, que estuda a iconografia da Cidade de Salvador. Em 1801, o frontispício do cronista Vilhena já sinaliza aquela região como ‘Água de Meninos’.

Ali mesmo, quase de frente pro asilo de órfãos, pescadores e vendedores passaram a comercializar um pouco de tudo:“Batata, milho, caju, melancia, feijão, acará, peixe, pequenas caças, papagaios, saguis, provavelmente couro, porque vinha muito couro do Sertão, algodão, rama, fibras, raízes medicinais, tabaco, erva santa e uma série de outras coisas ligadas à questão religiosa”, completa Rafael. Movimento na Feira de São Joaquim em registro feito em 1995(Foto: Sidney Haack/Arquivo CORREIO)   Hoje, as bancas de artigos religiosos são referência para o povo de santo, embora existam em outros lugares, como na Feira das Sete Portas e na de Itapuã: “A Feira de São Joaquim é o lugar em que acha tudo, que não falta nada. É um mundo”, resume o advogado Matheus Maciel, 27 anos, iniciado para Oxalá no candomblé e Omo Ifá Okan.

O Babá Pecê, babalorixá da Casa de Oxumarê, compara a Feira de São Joaquim à de Ibadan, em Oyo, na Nigéria:“Eu vi os mesmos hábitos, os mesmos costumes, vejo uma réplica daquelas mulheres negras trabalhando, vendendo mariscos, legumes, sempre daquele jeito descontraído. A Feira de São Joaquim, não só para a religião, é uma forma de sobrevivência para homens e mulheres negros”, declara.O líder religioso vê lá um espaço de suma importância para o candomblé. “Ali é da gente, é da religião, porque é um espaço importante, tem tudo que nós precisamos para fazer as nossas cerimônias, os nossos ritos”, completa, ao mesmo tempo em que cobra que não haja naquele espaço intolerância religiosa. Feira tem um setor inteiro dedicado às casas do Axé (Foto: Sidney Haack/Arquivo CORREIO) Haja dinâmica Odorico Tavares, no livro ‘Bahia: imagens da terra e do povo’, publicado em 1961, faz questão de criar na mente do leitor uma imagem da feira de outrora: “Todos os dias a feira prossegue (...). Os barcos chegando e saindo, são saveiros que vêm de todas as partes do Recôncavo. Trazem os mais variados produtos da terra baiana; bananas em cachos semiverdes, laranjas, cerâmica, aipim, os quiabos para os mais coloridos carurus, a pimenta malagueta de fascinantes efeitos”.

Embora todos esses produtos sejam vistos em São Joaquim, a dinâmica da feira tende a acompanhar as tendências da economia da região, defende o cientista social Márcio Nicory.

Ao estudar as dinâmicas da Feira, Márcio defende a ideia de que a feira pode ser pensada como um espaço limiar, entre o rural e o urbano, entre o moderno e o tradicional. “A continuidade, essa é a minha tese central, está associada à capacidade da feira em se transformar, algo além de se adaptar, mas próximo da ideia de mutação em meio a um segmento competitivo como o varejo, com os mercados e supermercados”, diz.

Para Márcio, o espaço da feira vai, ao longo dos anos, mudando e desenhando padrões. Em um dado momento, por exemplo, era o lugar das balas, dos banhos de folha e onde se achava tudo para preparar o acarajé, por exemplo:“Onde você poderia encontrar um galo vermelho em Salvador, com ‘alguma’ facilidade, se não em São Joaquim? Então, vejo que a feira continua, pelas metamorfoses, tendo um papel de entreposto regional. Além, ou principalmente, como um microcosmos socioeconômico”, traduz. Animais também são buscados na Feira, como neste registro de 1995 (Foto: Claudionor Junior/Arquivo CORREIO) A Feira no tempo:

Século XVI - A área onde hoje fica a feira era uma sesmaria recebida por Cristóvão de Aguiar Daltro. No local, foi fundado um engenho de açúcar que chegava até as imediações da Cidade Alta.

1704 - Jesuitas iniciam a construção do prédio de seu noviciato próximo ao local onde hoje fica a feira.

1798 - Autorizada a fundação do seminário para meninos órfãos no mesmo local, já que o prédio passou às mãos da Coroa Potuguesa depois de os jesuítas serem expulsos, em 1759.

1801 - No início do século XIX, o cronista Vilhena registra a região, em seu frontispício, como Água de Meninos. Nessa época, já havia algum comércio no local.

1930 - Nesta década, foi instalada na região a Feira do Sete, que ficava antes no Comércio, nas imediações do galpão 7 da Companhia das Docas. Mudou de endereço após ser destruída por um incêndio em 1934.

1959 - Fundada, oficialmente, no mesmo local, a Grande Feira de Água de Meninos

1964 - A Grande Feira, responsável pelo abastecimento da cidade, foi completamente destruída por um incêndio

1960-1970 - Feira foi reconstruída ao lado da Feira de Água de Meninos e batizada de São Joaquim.

2012 - Feira começou a passar por obras de requalificação, ainda não concluídas.

2017 - Virou reduto do samba em Salvador com a criação do Samba da Feira.