Feira de São Joaquim vira principal reduto de samba de Salvador aos domingos

Das 12h às 18h, pelo menos três mil pessoas sambam no píer da ala nova da feira

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  • Fernanda Santana

Publicado em 26 de janeiro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Não importa se chove ou faz sol. No palco improvisado na Feira de São Joaquim, o reco-reco, o tamborim e cavaquinho começam a soar ao meio-dia. Do alto, o que se vê é uma maioria feminina e negra. “Essas meninas aqui da frente estão sambando muito”, diz Pablo, vocalista do grupo Chamou Porque Quis, às mulheres que, no chão, organizam uma roda de samba. Aos domingos, a maior feira livre de Salvador tem sido também o maior reduto de samba da cidade. 

Das 12h às 18h, pelo menos três mil pessoas sambam no píer da ala nova da Feira, onde acontece, desde 2017, o chamado Samba da Feira. “São sete mulheres a cada três homens que a gente vê. É uma negrada muito linda, muito linda mesmo”, estima o organizador do evento, comerciante Nilton Ávila, o Gago.

As mulheres chegam sozinhas ou acompanhadas, vestidas como bem entendem – algumas, por exemplo, fazem de sutiãs rendados blusas – e com cabelos naturais soltos ou trançados. 

De macacão listrado, sutiã preto à mostra e unhas postiças rosa, a dançarina Luci Estrella, 32 anos, despreza os assobios e comentários enquanto circula pela feira. Dois senhores, sentados num bar, cutucam um ao outro e torcem o pescoço para vê-la passar. O tamanho da roupa, do corpo, ou a idade são desimportantes, ela acredita.“A descendência nos faz sentir viva, nos inspira. Sou eu quem digo o que eu visto, o que eu faço”, diz, sobre o significado do samba na sua vida.O ritmo parece ser, para elas, uma forma de rememorar a origem em comum. 

Donas da festa No século 20, foi justamente uma mulher negra, a santo-amarense Tia Ciata, quem formou ao seu redor, no Rio de Janeiro, um grupo que definiria o que hoje é chamado samba de partido alto – uma das vertentes que, junto ao samba de roda, é tocado ali. “O samba é uma forma de ressocialização, de rememorar. Nada é somente entretenimento”, explica o antropólogo Milton Moura.

Os negros escravizados trouxeram manifestações musicais, sobretudo legados da musicalidade do Candomblé, que resultariam, misturados os batuques, nas diferentes formas de samba.

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Por isso, as mulheres chegam como donas da festa, embora no palco ainda não se vejam representadas. Três bandas costumam se apresentar aos domingos e todas elas têm em comum integrantes homens. “No samba, a gente chega se achando mesmo”, define Jailma Bacelar Santana, 31, de top rendado e short de bolinhas brancas. Faltavam apenas os últimos ajustes para a segunda banda do dia, a Nosso Ritmo, começar o show e o píer estava completamente lotado. Na frente do palco, as mulheres revezavam, incessantemente, rebolados no centro de uma roda de samba. 

Nascida em Entre Rios, Josiane de Jesus Pinho, 36, chegou em Salvador ainda criança para trabalhar como babá. Desde 2015, é cozinheira de quentinhas que abastecem os bairros de Narandiba, Marback e Saboeiro. Ali, no samba, é hora de extravasar. No dia 12 de janeiro, o CORREIO visitou o samba e perguntou a Josiane, depois de ouvir sua história, se podia fotografá-la. “Vixe, que mulher linda é essa?”, respondeu à repórter, depois de ver a foto. Roda de samba no Samba da Feira (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Os homens ficam, geralmente, às margens das rodas de samba. Conforme o ritmo das músicas, acompanham, às palmas, o rebolado das mulheres. Pelo menos nesses momentos, a reportagem não observou assobios ou comentários machistas.

Quando acontecem as gracinhas, as mulheres dizem virar as costas ou responder com deboche. “A gente vem de uma sociedade machista. Mas aqui me sinto confortável para ser e me vestir como eu quiser. As pessoas parecem comigo, eu me reconheço”, comenta Gisele Carvalho, 28.  

‘Eu sou o samba’ Antes de começar o samba, todo o local é lavado por uma mistura de folhas de alfazema, e, depois, montinhos de milho branco são colocados nos pés de cada pilastra. “O milho branco representa a paz. É um lugar que virão muitas pessoas. Isso aqui é para que os orixás tomem conta da casa”, explica Gago, filho do orixá Oxóssi. Na tarde em que a reportagem esteve no samba, a entrada foi gratuita – às vezes, é cobrada uma taxa de R$ 10 a R$ 15 – e não houve nenhuma briga ou desentendimento. 

Só não há samba se houver algum desastre, costumam dizer os frequentadores. Mesmo se houver, só há cancelamento em último caso, brincam alguns. Nunca aconteceu. Desde 2015, um grupo de amigos feirantes organizava dentro da própria feira um samba. O espaço ficou pequeno e o grupo decidiu ocupar o Píer, dois anos depois. Hoje, o público vai além dos limites da feira.   Cervejas são colocadas em balde de plástico cheio de gelo para resistirem ao calor (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Enquanto um grupo de mulheres sambava ao seu lado, a chinesa Ann Xu, 23, observava. “É muito bonito isso aqui”, definiu a produtora, junto ao amigo paulista Kawai Cortese, 25. Os dois foram convidados por um casal de soteropolitanos habitués do samba. Ela própria arriscou uns passos de samba depois de a reportagem se afastar. 

No chão do píer, baldes de plástico cheios de gelo armazenam as cervejas, enquanto o samba é gingado e o calor ultrapassa os 30º C. A única proteção contra o sol são os tecidos coloridos que cobrem o espaço. Um grupo de cinco amigos diz à reportagem que, desde o início do Samba da Feira, batem ponto no evento. “Gosto muito do lugar. Música boa e galera bonita”, define o auxiliar de cozinha Guilherme de Jesus.  

O lucro do samba Num domingo de samba, a Feira de São Joaquim ganha um novo impulso. Até então, o primeiro dia da semana era dia de ir embora, no máximo, ao meio-dia. “A gente teve um incremento de 60%, além de ter diversificado muito nossa clientela”, calcula o comerciante André Neris, 42, dono de um restaurante às portas do píer. A clientela costumava chegar cedo, entre às 7h e 9h, comer os favoritos sarapatel e feijoada, e ir embora.

Agora, as cadeiras ficam ocupadas até à noite, e, no final de cada domingo, o comerciante calcula a venda de pelo menos 100 pratos de feijoada de feijão carioquinha – o prato individual custa R$ 23.  Em dias de samba, movimento aumenta até dez vezes mais (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) No pátio que dá acesso ao píer, baianas de acarajé, ambulantes e os próprios comerciantes da feira aproveitam a movimentação. Como não há cadeiras para todos, pode ser preciso ficar em pé à espera de lugar.“É cultura nossa, o samba raiz é afro. A gente se vê e se sente bem. É coisa de preto”, opina a enfermeira da Marinha Sidra Gomes, 32, de pé e copo de cerveja à mão. Às 6h, quando José Nunes chega àquela área da Feira para abrir seu bar já há espera. Então, o comerciante esquenta o ensopado e prepara a carne com aipim para, só depois, abrir o estabelecimento.“O pessoal precisa esperar. Está fazendo muita diferença para a gente. A feira cresceu por causa desse samba, consigo [lucrar] até dez vezes mais. Mas é preciso que se divulgue para as pessoas verem que podem vir pra cá”, acredita.  Os bares costumam fechar somente depois que o público do samba toma a última saideira antes de ir embora. 

Redescobrindo a feira Depois do Samba da Feira, começa o fluxo para a Feira Velha, como é chamada a parte mais antiga da Feira de São Joaquim. Lá, o samba chega a tocar até às 20h. No Galpão do Quiabo, abaixo da imagem de São Jorge protegida por vidro, as apresentações dos sambistas começam. O Samba do Quiabo, como é chamado, começa às 15h e termina às 19h, desde 2018. A entrada é gratuita.“Agora é um point”, acredita um dos organizadores, Benedito do Rosário, 59.  Quase vizinho, na Rua 18, acontece o Samba do Alemão. A banda anfitriã é a Balaio de Gato, que se apresenta no balcão no Bar do Alemão, improvisado como palco das 15h30 até 20h. “Só não há samba se tiver dilúvio. Quem gosta de samba realmente está sempre aqui”, responde Júlio Alcântara, 54, quando a reportagem pergunta se os leitores podem chegar na Feira com a certeza de que acontecerá o samba. O encontro acontece há cinco anos e também é gratuito. 

Hoje, os maiores nomes do samba de Salvador – alguns de fora da cidade – já passaram pelos sambas da feira. Os sambistas Nelson Rufino e Edil Pacheco, por exemplo, se apresentaram no Samba da Feira. Nomes como o Nosso Ritmo e Balaio de Gato já passaram pelo Samba do Quiabo.“A gente começou a entender que a Feira de São Joaquim é o pileque das melhores bandas de samba”, classifica Marcos Santana, produtor da Banda Fuzucada, do Engenho Velho da Federação, que se apresenta no Quiabo. Há 15 anos, comerciantes de São Joaquim organizam o bloco Vem Sambar, que, às 18h do sábado de Carnaval, sai na Avenida.

A noite já começou quando ainda se ouvem cavaquinhos e tamborins pela Feira. Alguns se organizam em grupo em direção a outros sambas tradicionais da cidade, como o do Garcia e o do Tororó. Outros preferem ficar por ali. “Ficamos até estender e depois ainda tem a saideira”, conta Elaine Xavier, 30, miss Plus Size do Bahia. Certo é que o domingo só termina quando o último samba for ouvido.  

SAMBAS DA FEIRA E HORÁRIOS

Samba da Feira: Horário: 12h-18h.Preço: Alguns domingos são gratuitos. Em outros, podem ser cobradas taxas de R$ 10 a R$ 15.

Samba do Quiabo:Horário: 15h-19h.Preço: Gratuito.

Samba do AlemãoHorário: 15h30-20h.Preço: Gratuito.