Festa de Iemanjá é a maior celebração dedicada a um orixá fora da África

Primeiro presente será entregue às águas no Dique do Tororó, à meia-noite de hoje

  • D
  • Do Estúdio

Publicado em 1 de fevereiro de 2020 às 06:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Imas Pereira

O dia ainda nem amanheceu e de longe já é possível ouvir – e sentir a energia – dos tambores que se espalham pela enseada de Santana, no Rio Vermelho, todo dia 2 de fevereiro.

Uma das maiores festas populares que acontecem em Salvador, a Festa de Iemanjá é a única com tamanha projeção dedicada ao povo de santo. “É a maior festa de um orixá africano fora da África”, ressalta Cristiane Sobrinho, pesquisadora da data especial.

É de uma energia contagiante. As ruas cheiram a alfazema. Terreiros se aglomeram na areia com cânticos para a Rainha do Mar. Com fé, o povo agradece e faz pedido. Candomblecistas ou não. Não sobra um canto de água no mar de tanta rosa que é ofertada à Senhora das Águas, Janaína, Iara, Marabô.

O presente oficial vai ao mar às 16h, mas desde cedo já começa a preparação do presente oficial, que tem à frente a Colônia de Pesca Z1, do Rio Vermelho, e a mãe Jacira de Obaluaê, do Terreiro Ilê Axé Jibayê, em Itinga. Ela assumiu os preparativos em 2016, após mãe Aice ter a responsabilidade religiosa por 24 anos. Hoje, às 10h, uma solenidade no Rio Vermelho tornará a Festa de Iemanjá patrimônio imaterial A fama da festa vai longe. Antes os grandes divulgadores eram filhos ilustres da terra, como Jorge Amado e Dorival Caymmi. Agora, é mesmo pelo boca a boca – e pelas redes sociais - que a manifestação cultural ultrapassa fronteiras antes inimagináveis. São milhares de pessoas que circulam desde o dia anterior pelo boêmio bairro onde tudo acontece.

E por ganhar tamanha projeção e importância para a preservação cultural da cidade que hoje, às 10h, uma solenidade no Rio Vermelho tornará a Festa de Iemanjá patrimônio imaterial, sendo inserida no Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações. 

O pedido de registro e reconhecimento da festa como patrimônio cultural de Salvador foi feito pela Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Bahia, com o apoio da própria Colônia de Pescadores, que organiza a festa. 

O processo será realizado pela Prefeitura de Salvador, por meio da Fundação Gregório de Mattos (FGM), que promoverá o ato solene. “Uma grande conquista. Vai garantir que essa memória se propague e seja resguardada, preservada”, destaca Cristiane Sobrinho.

A mulher com rabo de peixe Como toda tradição oral, bons “causos” não faltam para contar uma história. E na Festa de Iemanjá é ainda mais especial, com boas estórias de pecadores. A tradição vem deles, inclusive. Em 1820, o Rio Vermelho era de muito difícil acesso quando os jangadeiros iniciaram a tradicional romaria marítima.

A tirar pelas águas calmas e mornas da enseada de Santana, que permanecem iguais, o cenário pouco tinha similaridade com o de hoje: era uma pequena vila de pescadores, com casas de taipa e teto de palha. Nesta época, há relatos que acontecia na Praia da Paciência, ali ao lado, com bastante proximidade, a Festa de Nossa Senhora de Santana. São inúmeras as versões para o início da festa em celebração à mulher com rabo de peixe “Já tinha o culto de Iemanjá, mas era o subproduto da festa. Não era o principal e nem divulgada nos jornais”, conta o pesquisador Nelson Cadena. A história oficial do início da manifestação cultural, segundo Cadena, é relatada pelo intelectual baiano Manuel Quirino.

“Ele diz que na época da Guerra da Independência, em 1823, os portugueses invadiram a Praia do Rio Vermelho. Na época, os pescadores foram avisados por uma imagem de uma santa, que atribuíram à Nossa Senhora de Santana. Eles correram, fugiram. No ano seguinte, teria começado a festa do Rio Vermelho em agradecimento pela proteção dada”, conta o pesquisador.

A tradição seguiu por anos, com a presença cada dia mais forte da elite que veraneava na praia. “Eles assumiram o controle da festa. Os jangadeiros foram perdendo o protagonismo”, conta Nelson Cadena.

Em 1930, no entanto, houve uma ruptura entre a Igreja e os pescadores. “Se irritaram com o discurso do padre, que na cerimônia oficial questionaram os pescadores sobre adorarem uma mulher com rabo de peixe. Aí a Festa de Iemanjá, que era chamada de Mãe D’Água, ganhou vida própria”, conta o pesquisador.

Pescador há 45 anos, Nilo Silva Garrido, o Nilinho, conhece outra história. É que, segundo ele, nem sempre o mar esteve pra peixe por aquelas bandas. Num desses momentos difíceis, a resposta para um tempo bom de pescaria veio de uma promessa feita à Rainha do Mar.

“Pelo que eu saiba aqui, quem fez a primeira festa foi um pescador em uma caixinha de sapato na praia de Santana. Tava ruim a pescaria e ele colocou um presente no mar pedindo fartura. No outro dia pescou bastante peixe. Então, todo ano ele seguiu com a tradição do presente. Assim eu tô sabendo, né? Me falaram...”, conta, desconfiado.

A verdade é que ele – e grande parte dos pescadores do Rio Vermelho – se sentem abençoados por tamanha proteção que têm por todo o ano. Há 32 anos Nilinho pesca na mesma prainha de Santana. Toda vez que entra no mar, é à Iemanjá que pede por um bom dia de trabalho.

Por tamanha devoção, a Festa de Iemanjá, pra ele, é motivo de grande orgulho. “Muito bonita, né, não? A mais bonita que já conheci! Não é linda?”, pergunta, mesmo sem deixar muita opção pra resposta. No dia 2 de fevereiro, ele, além de levar e trazer pessoas para entregar presentes no mar, ajuda na coordenação e organização da Casa de Iemanjá, já que é associado da colônia. Um grande privilégio, não?

Festas para as Iabás A Festa de Iemanjá acontece no dia 2 de fevereiro. Oficialmente, porque na verdade a preparação vem de dias antes. Em cada terreiro são celebrados os demais orixás por toda a semana. Na véspera, ganha as ruas.

É no Dique do Tororó, à meia-noite, que o primeiro presente é entregue às águas. “É o presente para as Iabás. Quando você agrada Iemanjá, agrada também Oxum. As duas são muito próximas e, por isso, celebradas. Mesmo que Iemanjá seja a protagonista da festa”, explica Cristiane Sobrinho. Na madrugada do dia 1º para o dia 2 de fevereiro acontece o presente para Oxum no Dique do Tororó Conta por aí que o presente vai primeiro para Oxum por ela ser ciumenta. Puro mito, para Cristiane: “Oxum não rivaliza com Iemanjá. Se complementam. São mães e acolhem”, esclarece a pesquisadora.

Antes, por lá, a festa era mais restrita. Não por uma opção dos terreiros, mas por conta do conhecimento mesmo das pessoas. Assim como a festa protagonista, o presente do Dique aos poucos foi ganhando projeção - muito pelas ilustres participações.

Carlinhos Brown é um deles. Todo ano acompanha a entrega do presente pra Oxum. Já frequentam também atores como Regina Casé e Camila Pitanga. Chegam discretos e se integram à cantoria que não dura mais que 30 minutos.

Pouco tempo de celebração, mas de uma beleza ímpar. Vale conhecer e se integrar, ainda mais, à Festa de Iemanjá. Depois, na madrugada, para quem quer ver o dia raiar no clima de celebração, a dica é já ir para o Rio Vermelho. São inúmeras as festas abertas e privadas.

O nascer do sol é um espetáculo a parte. O dia amanhece com o céu em tons alaranjados, ao som dos atabaques, cheiro de alfazema, barcos na prainha e muita, muita, boa energia. Se não foi, passa por lá!

O especial Festas Populares tem patrocínio da Claro, Hapvida, Sotero Ambiental, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio do Salvador Bahia Airports.

O Estúdio Correio produz conteúdo sob medida para marcas, em diferentes plataformas.

Assinantura Estudio Correio
O Estúdio Correio produz conteúdo sob medida para marcas, em diferentes plataformas.