'Ficava rezando para chegar a noite e poder dormir', diz velejador baiano sobre prisão

Baiano fez um desenho para relatar como era cela onde ficou preso

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 15 de fevereiro de 2019 às 04:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Quando o baiano Rodrigo Dantas, 26 anos, recebeu a notícia de que uma famosa empresa de recrutamento de velejadores fazia seleção para um serviço de delivery, imediatamente o jovem tripulante ficou animado. Não era um delivery qualquer, que se pede por telefone ou aplicativo. A encomenda não era uma pizza e sim um barco. E o endereço de entrega não era aquele bairro vizinho, mas a Ilha de Açores, em Portugal.

O que Rodrigo não esperava era que a proposta - tentadora para velejadores em busca de experiência, como ele - resultaria em 533 dias de medo, solidão e sofrimento numa prisão a quase 2 mil milhas náuticas de Salvador. Rodrigo, o também baiano Daniel Dantas e o gaúcho Daniel Guerra foram condenados a dez anos de prisão por tráfico internacional de drogas - tinha cocaína no barco.“Eu ficava rezando para chegar a noite e poder dormir, porque quando sonhava, eu estava fora daquele lugar”, lembra Rodrigo.Os três velejadores contaram ontem a própria história, após desembarcarem em Salvador de madrugada. A sentença foi anulada e eles puderam retornar ao Brasil, onde aguardam novo julgamento. Rodrigo Dantas admite que rezava para chegar hora de dormir, para esquecer que estava preso (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Para velejadores em busca de experiência, era uma oportunidade de ouro: muitos chegam a pagar para fazer o serviço e têm como recompensa a comprovação de milhas aquáticas navegadas, uma espécie de quilometragem necessária para que velejadores se tornem capitães.

A empresa em questão era a The Yatch, uma companhia holandesa que faz esse tipo de recrutamento por todo o mundo. Rodrigo logo decidiu se candidatar. Caso fosse selecionado, além de conseguir as milhas, ainda realizaria um antigo sonho de fazer uma travessia longa pelo Oceano Atlântico. Ou seja, era uma oportunidade perfeita. Melhor ainda: a embarcação estava em Salvador. Bingo! Pouco depois de enviar o currículo, Rodrigo foi selecionado.

Era chegada a hora de partir. No barco, ainda em Salvador, ele conheceu o dono da embarcação, o inglês George Fox; o capitão, francês chamado Olivier Thomas; e também reencontrou um antigo conhecido, o gaúcho Daniel Guerra, 36. Os dois iniciaram a vida de velejadores juntos na mesma escola. De Salvador, o barco subiu até a capital do Rio Grande do Norte, Natal, onde o dono do barco abandonaria a embarcação e um outro tripulante chegaria: o também baiano Daniel Dantas, 44. Só depois disso é que partiriam para a Europa.   Destino de veleiro e dos três brasileiros era a Ilha dos Açores, em Portugal (Foto: Reprodução) Tanto em Salvador quanto no Rio Grande do Norte, o barco foi periciado pela Polícia Federal (PF). Eles só saberiam meses depois, mas a embarcação de George Fox era suspeita de transportar drogas pelo mundo. A PF utilizou agentes e até cães de busca nas duas vistorias realizadas, mas não conseguiram encontrar nada. Segundo Guerra, cada vistoria levou cerca de cinco horas. Liberados, eles se lançaram ao mar.“O barco tinha um histórico de investigação e a gente não sabia”, apontou Daniel Guerra.  Parada No Oceano Atlântico, as dificuldades foram muitas. O barco passou dois anos sendo reformado no Brasil. Se tratava de uma embarcação velha e, por conta disso, precisava de uma série de reparos em seu espaço interno e externo, além dos equipamentos. Os três velejadores contaram que George Fox explicou que trouxe o barco para o Brasil porque a mão-de-obra no país é mais barata do que na Europa. 

Mas, ao que tudo indica, a reforma não foi suficiente. Além dos perigos naturais de estar a bordo de um veleiro em alto mar, o trio brasileiro enfrentou uma série de problemas técnicos. O motor do barco parou e eles ficaram dependendo exclusivamente do vento para se deslocar.

O barco também enfrentou problemas hidráulicos e o gerador - que, entre outras coisas, era responsável por garantir a eletricidade para armazenar os alimentos da tripulação - também pifou. Por fim, o baiano Daniel Dantas ainda enfrentou problemas de saúde por conta da quantidade de fumaça que inalou durante o trabalho.

Não restou outra opção aos tripulantes: o plano de levar o veleiro direto para a Ilha dos Açores foi substituído por uma parada em Cabo Verde. O pesadelo, de fato, começou ali. Ao atracar em uma marina cabo-verdiana, veio outra vistoria. Desta vez feita pela Polícia Judiciária de Cabo Verde, uma espécie de Polícia Federal do país.

Oliver Thomas, capitão do barco, e o brasileiro Daniel Guerra ficaram aguardando os policiais fazerem a vistoria e não imaginavam o que iria acontecer: após muitas buscas, os agentes de Cabo Verde começaram a comemorar. Encontraram, escondida em um antigo tanque do barco, uma tonelada de cocaína.

Thomas e Daniel Guerra foram presos em flagrante por tráfico internacional de drogas. O dia era 23 de agosto de 2017. Os dois baianos conseguiram responder temporariamente em liberdade, mas foram presos quatro meses depois, no dia 18 de dezembro de 2017, após o Ministério Público de Cabo Verde alegar risco de fuga e continuidade das atividades criminosas. Baiano Rodrigo Dantas fez desenho da cela onde ficou preso (Foto: Reprodução) Cadeia Primeiro a chegar à prisão, Daniel Guerra passou 21 dias em uma cela solitária numa ala de segurança máxima da Cadeia Central São Vicente. A rotina era de solidão e sofrimento. A cela era escura, sem janelas e propensa tanto ao frio quanto ao calor. Na época que foi preso, era Verão e o calor era muito grande. 

Era um banho por dia na cela, quando um guarda colocava uma mangueira para dentro e deixava a água correndo por dois minutos. “Sobrevivemos com muita força e pela vontade de viver. Nossos familiares nos ajudaram muito e deram um apoio inexplicável”, revelou Guerra.

Os três também se apoiavam bastante na prisão. Rodrigo e Daniel Dantas ficaram na mesma cela, junto com outro preso. Mas, como a capacidade era para apenas dois, eles revezavam a cama. Dia sim, dia não, um dos dois baianos dormia no chão da cela. E essa rotina se repetiu por mais de um ano.

Em novembro do ano passado, Rodrigo chegou a desenhar o lugar. “Vivo em uma cela com mais dois detentos e apenas duas camas, revezamos a dormida no chão. Minha rotina se resume à 20 passos. 20 passos mesmo, do tipo passadas com os pés”, disse, descrevendo o desenho. Daniel Dantas falou da dor.“Em meu primeiro dia, eu batia na cela e gritava, mas ninguém me escutava. Eu chorei, chorei muito. A injustiça me torturou por vários dias”, disse Daniel. Daniel Dantas conta que gritava na cela, mas ninguém o escutava  (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Já Guerra chegou a ter como companheiro de cela um homem nigeriano que matou a mulher com 32 facadas e um assaltante de bancos, por exemplo.

“Não era uma colônia de férias. A rotina era muito dura. Eu nunca perdi a esperança, foram dias muito difíceis”, contou Rodrigo Dantas.

Já fora da zona de segurança máxima, eles saíam da cela apenas para tomar banho de sol três vezes por semana e, diariamente, para tomar banho no único banheiro disponível no pavilhão com mais de 28 celas. A leitura foi uma aliada para resistir aos dias de reclusão. Eles calculam que cada um chegou a ler 120 livros dos mais diversos tipos: desde manuais náuticos até o Alcorão. Até semana passada, quando ganharam liberdade condicional. Daniel Guerra é gaúcho e foi o primeiro a ser preso. Ele ficou em solitária (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Liberdade A família de Rodrigo se mudou para Cabo Verde logo que soube da prisão. Eles preferiram não falar qual o valor foi gasto com advogados, passagens e toda a mudança que precisaram fazer para estar ao lado de Rodrigo, mas uma coisa é certa: a rotina foi dura e difícil de se viver.

Segundo a mãe de Rodrigo, Aniete Dantas, após o período em que os familiares se dedicaram a explicitar o caso em todo o mundo, por meio de campanhas virtuais e apoio de outros velejadores, a Justiça de Cabo Verde considerou a inocência dos então presos, embora ainda não os tenha absolvido."Quando o juiz recebeu o caso, julgou como se fosse mais um, das tantas situações de tráfico de drogas vistas. Mas aí eles viram que não paramos de lutar, mesmo depois da condenação, porque nunca conseguiram provar nada", comentou ela.Ainda não há, segundo os parentes, data para um novo julgamento. As autoridades de Cabo Verde já adiantaram, no entanto, que existe uma agenda com previsão de envio de cartas para testemunhas no Brasil. As famílias dos brasileiros se agarram a uma única certeza: seja contra ou a favor do vento, o barco não pode parar.

Em março do ano passado, os três chegaram a ser condenados a 10 anos de prisão por tráfico internacional de drogas, mas o julgamento foi anulado em dezembro do mesmo ano. Quando se passaram 18 meses desde a primeira prisão, eles tiveram a liberdade condicional concedida e puderam voltar para casa. Famílias dos velejadores publicizaram o caso pelo mundo e fizeram protestos pela soltura deles (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Os três chegaram a Salvador na madrugada desta quinta-feira (14), mas Rodrigo foi o primeiro a desembarcar na capital. Ele foi recebido por amigos e familiares que carregavam cartazes e aplaudiram o baiano, mais jovem entre os brasileiros presos, desde o momento em que foi avistado. 

Daniel Guerra é gaúcho, mas sua primeira parada no Brasil foi em Salvador. Ele ainda não teve oportunidade de ver a sua família, mas a saudade tem prazo para ser encerrada e ainda hoje ele embarca para sua terra natal. “Não há nada melhor do que estar perto do seu povo, de sua gente. Eu ainda não vi minha família, mas estar aqui é um grande alívio. É muito emocionante.”, explicou Guerra.

Depois da aventura que se tornou pesadelo, não seria estranho que os três velejadores tomassem um certo medo. Mas não foi isso que aconteceu. Muito pelo contrário, eles contaram que sentiram falta do mar e da sensação que era de velejar das águas salgadas. Talvez nunca mais se aventurem a ir tão longe fazendo delivery, mas praticar vela como esporte é uma opção.

Eles ainda terão tempo para pensar no que fazer até que um novo julgamento seja marcado em Cabo Verde. Por hora, só querem aproveitar as famílias e experiências simples, como tomar um banho de chuveiro, o que não faziam há mais de um ano. De toda forma, fica a certeza: quem é do mar não enjoa.

Inglês foi preso por menos de dois meses Se os brasileiros viveram 18 meses de agonia na prisão de São Vicente, em Mindelo, Cabo Verde, o inglês suspeito de ser dono da cocaína encontrada no barco velejado pelos brasileiros não chegou a ficar dois meses preso - na Itália.

Detido em agosto do ano passado pela Organização Internacinal de Polícia Criminal (Interpol), George Fox tinha tido a prisão preventiva pedida pela Polícia Federal (PF) brasileira. Ele era alvo da chamada “difusão vermelha” da Interpol e era procurado em mais de 180 países.

O inquérito apontava ele como o responsável pela logística de transporte da droga. Foi ele, inclusive, quem trouxe o barco até o Brasil com o argumento de que a manutenção aqui era mais barata que na Europa.

Logo que a prisão foi efetuada, na Itália, a Polícia Federal pediu a extradição para o Brasil de George Fox. No entanto, sem que houvesse uma explicação sobre as razões, George Fox foi solto no dia 17 de setembro do ano passado.

“Ainda não sabemos quais as razões do pedido não ter chegado às autoridades italianas”, informou a Polícia Federal, em nota, na época.

Em junho daquele mesmo ano, outro inglês, Robert James Delbos, também apontado como dono da droga apreendida, foi preso na Espanha.

O pedido de prisão de George Fox e Robert James incluía, ainda, outro inglês, Matthew Stephen Bolton, também apontado como responsável pela droga.*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro