Filho de Ogum, João Paulo II chegava a Salvador há 40 anos

De prostitutas presas a cuscuz de presente, lembre como foi a passagem do papa pela capital baiana

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  • Gabriel Moura

Publicado em 6 de julho de 2020 às 10:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Lourival Custódio Pereira/Arquivo CORREIO
Folheto era pra missa dos alagados que não aconteceu pela falta de tempo por Foto: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II

Ao abrir as portas do Boeing 737 que o trouxe de Curitiba e ser saudado pelo calor do inverno soteropolitano, o papa João Paulo II deparou-se com um corredor de autoridades que, ansiosos, esperavam por ele na Base Aérea de Salvador. Dentre políticos e cardeais, uma freira de 1,48m chamada Irmã Dulce se destacava. 

Eufórica por ver o sumo pontífice de perto, Dulce quebrou o protocolo e foi ao encontro de sua santidade. Em frente ao papa, o abraçou, se ajoelhou e beijou seus pés. Ninguém ali poderia imaginar, mas o encontro da freira baixinha com o polonês de cabelos brancos era um encontro de futuros santos para a Igreja Católica. (Foto: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II) Há 40 anos acontecia este encontro divino, exatamente às 15h daquele 6 de julho de 1980. Naquela data, assim como Irmã Dulce, milhões de baianos estavam animados pois era a primeira vez que um papa colocava os pés na Bahia.

A ansiedade pelo momento aumentou devido ao atraso de João Paulo, que deveria pousar no antigo Aeroporto 2 de Julho, às 13h20, mas acabou demorando 1h40 a mais por causa de problemas em sua saída de Curitiba. Sabendo da longa espera dos fiéis e do tempo curto, o papa não se alongou nos cumprimentos protocolares com autoridades e subiu no papamóvel para dar início a sua visita de 25 horas a Salvador. Governador da Bahia na época, ACM foi receber o papa no aeroporto (Foto: Arquivo Agecom) Após deixar o aeroporto, pegou a Avenida São Cristóvão e ali começou o seu desfile de 36km pela orla de Salvador até a Catedral Basílica, no Terreiro de Jesus. 

O caminho escolhido deixou o Dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Salvador à época, de cabelo em pé. O seu temor era que o povo recebesse o papa de sunga e biquíni após tomar banho de mar. Felizmente para o cardeal, chovia bastante nesse dia e não deu praia.

A preocupação era tanta que, para criar uma Salvador “pra polonês ver”, 150 pessoas, a maioria prostitutas, foram detidas numa ação batizada de “Operação Limpeza”, realizada um dia antes da chegada do pontífice, segundo reportagem do Jornal do Brasil na época. As garotas de programa só foram soltas após o papa ir embora da capital baiana, no dia seguinte.

Sem trajes sumários e profissionais do sexo nas ruas, 1,5 milhão de pessoas que se aglomeravam por toda a orla de Salvador não desanimavam nem com a forte chuva. O povo gritava “deixa chover, deixa molhar; é por aqui que o papa vai passar” e, em seguida, emendava “Bahia, Bahia, Bahia; o papa é o nosso guia”.

“Foi um momento lindo. Só pude ver ele rapidinho enquanto passava em seu carro mas já valeu a pena”, lembra a aposentada Maria Motta, 83, que ficou na frente do antigo Clube Espanhol para olhar o papa de pertinho. População de Salvador em 1980 era de 1,5 milhão, mesmo número de pessoas que foram até a orla ver o papa (Foto: Hipólito/Arquivo CORREIO) Após o tour pela orla, passando pelo Farol da Barra, João Paulo II chegou a Catedral Basílica, onde fez um pronunciamento apenas para convidados. O esquema de segurança e as dificuldades para chegar ao local eram tantas que apenas 800 das mais de 2 mil pessoas esperadas conseguiram participar do encontro.

O discurso para o público fechado foi de caráter extremamente religioso. Nele, o papa convidou os presentes a viverem como se “o próprio Cristo vivesse" em cada um.

Após a missa privada, ele se dirigiu até o palácio residencial do cardeal, no Campo Grande, onde iria dormir. Ao chegar lá, apareceu na janela e leu 13 laudas de um pronunciamento para mais de 50 mil pessoas que o esperavam. O pontífice teve dificuldades para realizar a leitura pois estava com a voz rouca e desgastada. 

Era um sinal de seu cansaço devido a jornada que estava enfrentando.

Com 60 anos, João Paulo II estava apenas na metade de uma maratona tropical que envolvia visitar 13 cidades brasileiras em 12 dias. Ele já tinha passado por Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Aparecida, Porto Alegre e Curitiba. Após Salvador ainda iria para Recife, Teresina, Belém, Fortaleza e Manaus. Salvador foi a segunda cidade em que ele permaneceu mais tempo durante a visita, atrás apenas do Rio de Janeiro.

Ao ver toda essa correria, a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi decretou: João Paulo II era filho de Ogum. Em entrevista ao antigo Jornal do Brasil ela ainda brincou dizendo que se fosse levar em consideração as cores do Vaticano, amarelo e branco, ele seria filho de Oxum. “Mas com toda essa peregrinação, com certeza ele é filho de Ogum, dono das estradas e da vida”, apontou Mãe Stella.

Após a leitura, o papa se dirigiu aos aposentos para descansar. Algumas apresentações artísticas, incluindo um show particular de Dorival Caymmi, foram canceladas para que o pontífice tivesse uma noite tranquila de sono.

Em sua estadia na casa do cardeal, o papa foi servido por 35 peças de cristal, algumas lapidadas pelo artista Calixto de Abreu. Até a geladeira da residência do cardeal foi pintada com as cores do Vaticano para criar um clima hospitaleiro.

Os objetos utilizados por João Paulo II em Salvador podem ser visitados pelo público em dois locais: na Catedral Basílica e outra parte no Centro Cultural Palácio da Sé - Dom Sebastião Monteiro da Vide. Foto: Hipólito/Arquivo CORREIO Ida aos alagados No dia seguinte, o papa acordou cedo para receber pacientes do antigo leprosário de Águas Claras e descendentes de poloneses no palácio residencial. Depois, subiu no helicóptero para ir até o bairro dos Alagados, onde 110 mil pessoas o esperavam. Ele desceu no complexo militar dos Dendezeiros e pegou um ônibus. No caminho, passou em frente das Obras Sociais Irmã Dulce e seguiu até o Uruguai, que teve ruas asfaltadas apenas para recebê-lo.

Esse bairro foi escolhido para receber o papa por ser um símbolo dos locais socialmente críticos de Salvador na época. Segundo o Dom Avelar Brandão Vilela, os Alagados representavam a luta do povo que saía do interior para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida e que, muitas vezes, eram obrigados a construir palafitas para sobreviver.

Para avaliar as condições do local, o líder da Igreja Católica pediu que Madre Teresa de Calcutá visitasse a comunidade em 1979. Lá, a também futura santa fundou uma creche e a Congregação Missionárias da Caridade. Além disso, se encontrou com Irmã Dulce, que ofereceu a ela o controle das suas obras sociais, oferta recusada por Madre Teresa

Naquele bairro, em 1980, cerca de 25% dos moradores viviam em palafitas construídas sobre a lama da enseada dos Tainheiros, que anos antes recebeu sete toneladas de mercúrio despejadas pela Companhia Química do Recôncavo em suas águas, contaminando os mariscos e peixes consumidos pelos residentes dos Alagados.

Foi em meio a esse cenário que o sumo pontífice recebeu o maior calor humano de toda a viagem. Ao chegar, a população conseguiu romper o bloqueio de segurança e se aproximou de João Paulo, que atendeu a todos, carregou diversas crianças no colo, recebeu diversos abraços e presentes de moradores do bairro.

Entre os “recebidos papais” estavam cuscuz, tapioca, um pequeno barco, uma flor confeccionada com cascos de siri e um estojo feito de conchas marinhas retiradas na região. Criança conseguiu furar bloqueio para abraçar o papa (Foto: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II) Após receber o calor do povo, ele parou por um bom tempo nas escadarias da Paróquia de Nossa Senhora dos Alagados e acenou para o público. A igreja foi construída para ser inaugurada pelo papa naquela data e, em 2014 quando João Paulo II foi santificado, ela se tornou a primeira paróquia dedicada ao santo no mundo. (Foto: Arquivo da Paróquia Nossa Senhora dos Alagados e São João Paulo II) O papa estava com o tempo apertado na visita ao bairro e, por isso, a missa que realizaria no local, além de uma roda de capoeira preparada pelos locais, foi cancelada. O discurso que ele faria, no entanto, foi divulgado para a imprensa e fazia duras críticas a situação enfrentada pelos moradores das regiões carentes de Salvador.

Leia alguns trechos: 

“Vejam: só o amor conta – não é demais repetir isso – só o amor constrói. Vocês têm de lutar pela vida, fazerem tudo para melhorar as próprias condições em que vivem, é um dever sagrado, porque essa é também a vontade de Deus. Não digam que é vontade de Deus que vocês fiquem numa situação de pobreza, doença, má habitação que contraria, muitas vezes, a sua dignidade de pessoas humanas. Não digam: “É Deus quem quer”.

"Sei que isso não depende só de vocês. Não ignoro que muita coisa deverá ser feita por outros para acabar com as más condições que afligem vocês ou para melhorá-las. Mas vocês é que têm de ser sempre os primeiros no tornar melhor a própria vida em todos os aspectos. Desejar superar as más condições, dar as mãos uns aos outros para juntos buscar melhores dias, não esperar tudo de fora mas começar a fazer todo o possível, procurar instruir-se para ter mais possibilidades de melhoria: estes são alguns passos importantes na caminhada de vocês”.

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500 mil fiéis esperavam o papa na lama  Após a visita aos Alagados, João Paulo II se dirigiu até o Centro Administrativo da Bahia (CAB), onde realizaria uma missa para 500 mil pessoas.

A expectativa para a grande missa do papa em Salvador era tamanha que, antes da celebração, houve procissão que reuniu as imagens do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora Conceição da Praia. Era apenas a terceira vez que as imagens católicas mais importantes da Bahia se encontravam. As outras foram em celebração ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e na comemoração dos 300 anos da Diocese de Salvador em setembro de 1978.

Para completar o cenário, chovia muito naquele 7 de julho e o local virou uma verdadeira lama, mas ninguém arredava o pé. O toró deixou Irmã Dulce, que estava em meio a multidão, com pneumonia. 

Ao chegar no CAB, o papa entrou em uma sala montada atrás do palco onde seria realizada a celebração. Lá ele cumprimentou os clérigos presentes e se jogou no chão onde, de joelhos, rezou por cinco minutos. “Ninguém dizia um pio, todos ficavam em silêncio admirando aquela cena”, lembra o padre Abel Pinheiro, que foi diácono naquela missa.

Abel fora ordenado diácono apenas uma semana antes e aquele era seu primeiro trabalho na função. “Imagine a emoção: eu, com 23 anos, tinha acabado de me tornar diácono e vi o papa com aquele gesto. Foi uma experiência única na minha vida, um presente de Deus”, lembra, emocionado.

A missão de Abel Pinheiro na missa era segurar o livro com o discurso de João Paulo II. O papa comandou a celebração em um português cheio de sotaque. No discurso, ele novamente criticou os mais ricos pela desigualdade social vivida no Brasil. “Apesar de tudo que ele disse nas missas, a sua verdadeira pregação aqui foi a sua presença, empatia e carisma”, aponta o padre Abel.Após a missa, João Paulo II ainda foi almoçar antes de voltar ao Aeroporto 2 de Julho e embarcar para Recife. Onze anos depois, em 20 de outubro de 1991, o único papa a pisar em Salvador ainda voltaria aqui para visitar aquela mesma freira que o recepcionara em 1980, mas que agora estava acamada em seu leito de morte. 

Dulce morreria quase cinco meses depois em 13 de março de 1992. Em 2019, repetiria a história de João Paulo e se tornaria santa. As primeiras igrejas do mundo dedicadas tanto a São João Paulo II quanto a Santa Dulce dos Pobres estão localizadas em Salvador, cidade onde os santos se encontraram por duas vezes. João Paulo II fez questão de ir visitar Irmã Dulce no leito de morte em 1991 (Foto: Arquivo / OSID)