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Paulo Sales
Publicado em 13 de setembro de 2021 às 05:01
- Atualizado há 2 anos
Outro dia, dei de cara com a seguinte frase do dramaturgo francês Antonin Artaud: “Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno”. É como se o processo de criação, não importa de qual natureza, permitisse que nos salvássemos do breu. Tanto do inferno particular e único de cada um quanto do inferno coletivo, partilhado entre todos os seres humanos. Seriam, os criadores, filhos das trevas em busca de luz.>
Quando Pedro Almodóvar cria um filme como Dor e Glória, ele está se purgando dos traumas do passado para tentar superá-los: a relação conflituosa com a mãe, o alvorecer do desejo e a aceitação desse desejo, a paralisia provocada pela depressão e pelos problemas de saúde. Ali o grito se fazia necessário, a libertação como um bisturi removendo as entranhas para retirar o cancro vivo.>
Quando Franz Kafka dá forma a um incisivo romance epistolar – ou uma missiva romanceada – como Carta ao Pai, ele despeja em palavras um rancor represado por anos de silêncio e submissão, que se converte em catarse e enfim o liberta. Quando Charles Bukowski desfere um petardo na caixa dos peitos do leitor com o romance de formação Misto Quente, ele também se emancipa do horror que foi a vida em família, ao lado de um pai tirânico e de uma mãe indiferente.>
O mesmo acontece com Amós Oz em De Amor e Trevas, seu livro de memórias, que acabei de ler esta semana. Mas neste caso a matéria-prima é outra. Não é tirania ou opressão, brutalidade ou desprezo. Mas sim assombro e perplexidade. As reminiscências da infância em Jerusalém e da adolescência num kibutz servem apenas como pano de fundo para o que realmente importa: purgar-se do trauma que foi o suicídio da mãe, quando ele tinha 12 anos.>
Rodeado de silêncios, a ponto de jamais ter conversado com o pai sobre o assunto, o escritor israelense enfim liberta-se do inferno com o processo criativo que desaguou no livro. O pequeno Oz me faz lembrar do menino que fui: introspectivo, tímido e de certa forma castigado por uma dor que desconhecia. Sua solidão de filho único, no entanto, era muito mais avassaladora.>
Ela ecoa neste trecho: “Compreendi de onde eu tinha vindo: de uma bolha de tristeza e de pretensão, de saudade e de fingimento, de miséria espiritual e prestígio provinciano, de educação sentimental e ideais que tinham perdido o frescor, como flores abafadas, traumas reprimidos, resignação, submissão e desespero.”>
“Que fazer, com o inferno no peito?”, perguntava-se Vladimir Maiakovski. Nem ele poderia responder. Como a mãe de Amós Oz, o poeta russo deu cabo da própria vida, provavelmente por não suportar o fardo, a pedra imensa infinitas vezes rolada do alto da montanha. Talvez a resposta esteja em seus próprios versos: “Eu medito. Os pensamentos, coágulos de sangue, enfermos, ardendo, porejam de meu crânio. Eu, criador de tudo que é festa, não tenho com quem ir à festa.”>
É provável que não seja assim como disse Artaud. É provável que nem todos os criadores precisem de um impulso para abandonar o inferno em que estão encerrados – se é que estão. Mas é fato que há algo nesse processo que se compara a uma busca por redenção. Quem sabe uma necessidade involuntária e inconsciente de se perpetuar, seja como indivíduo ou como espécie. Como ter um filho e transferir para ele os nossos genes, a nossa essência, dando prosseguimento à trilha que começou lá atrás, quando éramos pouco mais do que girinos.>