Filhos de Gandhy: hoje, é importunação sexual que fala

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 23 de fevereiro de 2020 às 13:06

- Atualizado há um ano

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Quando o Filhos de Gandhy surgia na avenida, era hora de subirmos para o terraço do prédio onde morava a madrinha de minha mãe, no centro de Salvador. Durante anos na minha infância, ver o "tapete branco da paz" foi um dos pontos emocionantes do Carnaval da Bahia. Eram momentos de respeito, deslumbramento com a belíssima imagem, deleite com o inconfundível toque do agogô e de dizer a saudação "ajayô", mesmo antes de saber o significado. 

(Ajayô: termo de origem africana repetido pelos componentes do bloco. Tem o sentido de "sopro de saudação feita a Oxalá".)

Milhares de homens bons desfilando no meio do Carnaval, pedindo paz. Era essa a imagem. Nada podia ser mais sedutor para a adolescente que fui, em seguida. Um namorado vestido de Gandhy era muito do que eu queria, quando comecei a pisar na avenida, de verdade. E tive, claro. Todas tivemos. Se não um namorado, beijos trocados pelos colares de contas azuis e brancas que exibíamos, orgulhosas, nos pescoços suados de folia. Eu tive uma pequena coleção que ficava pendurada na porta do meu armário. 

Demorei pra perceber em que lugar aquela troca de beijos por colares me colocava. Assim como só muito tempo depois consegui nomear o que aqueles homens faziam quando não tínhamos interesse nos "colares" ou quando a multidão apertava e eles levantavam a corda para que entrássemos no bloco e fossemos "protegidas". Além de ainda ser muito novinha, aquele era um tempo no qual certos tipos de abuso sequer tinham nome, de tão naturalizados. Hoje, é importunação sexual que fala. 

Ou estupro, em casos mais graves. Como o que minha amiga Ana, jornalista, assistiu, de cima de um trio, perto do Relógio de São Pedro, quando quatro Gandhys encontraram um casal de namorados, bateram no cara e violentaram a garota, no meio do Carnaval. "Era comum ver Gandhys agarrando mulheres na brutalidade, dando socos nos namorados, batendo nas pessoas aleatoriamente. Nunca entendi o silêncio sobre o bloco, mesmo sabendo de todas as 'razões' políticas e 'míticas' para a blindagem", foi o que ela me disse, num papo, por Whatsapp.

Um deles rasgou a minha roupa e esse foi o último encontro que tive com o bloco do qual passei a fugir, assim como de todos os formados por homens, que, nos dias de folia, circulam pela cidade. Tô fora de Muquiranas também, aliás. Este - que eu sempre detestei - apesar de ter espalhado outdoors pela cidade apoiando a campanha contra a importunação sexual, continua desfilando o comportamento vergonhoso de grande parte dos seus componentes. As arminhas de água seguem nas mãos de caras vestidos de mulher que não têm graça nem antes, nem durante, nem depois do Carnaval. Precisam trabalhar mais, em busca da dignidade. Pelo mesmo comportamento, apenas com diferentes nuances, aprendi a ficar longe de qualquer bloco no qual a genitália masculina seja o único documento imprescindível, para que se consiga ser um associado.

É claro que as amplas e intensas campanhas de respeito ao feminino ecoam, também, dentro dessas cordas. Nas festas de rua, em geral, as coisas andam mais suaves. Mas vindo dos Gandhy nunca se viu um posicionamento, uma autocrítica, uma reparação sequer. O tempo passa e eles desfilam como se nada houvera, ainda sob o manto do silêncio, da pose de paz. Óbvio que sei que "nem todo Gandhy". Isso é fato. Eu jamais acusaria Gilberto Gil, por exemplo, de qualquer brutalidade. Nem meus amigos fofos que ficam lindos naqueles panos brancos. Mas estranho, sim, que desfilem tranquilos, sem qualquer questionamento, dentro da fantasia que, durante décadas, abriga a natureza violenta e predatória do homem tradicional. 

Feliz Carnaval, bom desfile, ajayô! Daqui, sigo torcendo por uma explícita mudança de postura, pela necessária autocrítica e devidas retratações. Porque tem silêncio que também agride e esse é um dos mais monumentais. O maior afoxé da história, ao fazer vistas grossas para o comportamento abusivo de muitos dos seus associados, legitima o uso daquela fantasia como disfarce para quem comete esse tipo de crime, afirma que o fim da violência contra a mulher não está incluído na paz que propagam. Importante repensar. Sobretudo, sendo uma entidade tão tradicional, honrar a ancestralidade: cada um dos seus milhares de associados foi parido por uma de nós, é bom que saibam.