Fora dos trilhos: soteropolitanos lotam trens do Subúrbio em despedida

Modal não funcionará mais e VLT será o substituto

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  • Wendel de Novais

Publicado em 14 de fevereiro de 2021 às 08:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Wendel de Novais/CORREIO

Depois de 160 anos, a viagem da Calçada até Paripe - ou o contrário - passa a não existir. Pelo menos, não da mesma maneira, já que os soteropolitanos não usarão mais o sistema ferroviário que interliga o Subúrbio Ferroviário, com 10 estações que passam pela Baía de Todos os Santos e deixou de operar às 19h30 deste sábado (13). O trem dará lugar ao Veículo Leve de Transporte (VLT), que deve otimizar a viagem, mas não sumirá do imaginário dos soteropolitanos.

Por isso, o clima não poderia ser diferente na estação da Calçada, onde muitos soteropolitanos foram para dar a última volta de trem, em clima de despedida do modal que marcou suas vida. E não é só a vida das pessoas que o Trem do Subúrbio marcou. Segundo historiadores, a operação do trem é essencial para entender o desenvolvimento da capital baiana, que teve ele como inovação para transporte de mercadorias quando foi criado e o viu virar uma opção viável de transporte para os habitantes dos Subúrbio Ferroviário por anos. Trem circulou pela última vez por volta das 19h30 (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) Lugar cativo no coração Mesmo sendo um sábado de Carnaval, no meio de uma pandemia e sem festas nas ruas, o trem não ficou vazio. As pessoas, que usavam o modal como meio para chegar a um destino, saíram de casa tendo ele como ponto de chegada. Tudo isso pela forte ligação com os vagões que os carregaram por anos e anos. Teve gente chorando, apresentando o trem para os filhos e, principalmente, tirando fotos para garantir, no último dia de existência do sistema ferroviário de trens da cidade, a sua lembrança eterna de um lugar guardado com muito carinho.

Uma das pessoas que fizeram isso foi a aposentada Maria Conceição Silva, 65 anos, que mora em Periperi e saiu de casa para ir, pela última vez, ao mercado de trem. Emocionada, ela falou da tristeza que foi se despedir e lembrou a importância que o sistema teve para sua vida já que chegou a reais na estação de Periperi quando sua família não tinha onde morar.  "É muito triste, tô aqui emocionada dizendo adeus. Meu pai trabalhou nesse trem e, em uma época, minha família morou no trem porque nossa casa encheu de água, perdemos tudo. Moramos anos como outras famílias em vagões e, mesmo depois de morar, a ligação se manteve como transporte. Se eu vinha pra calçada, vinha de trem. Pra o hospital de Irmã Dulce, vinha de trem, tudo com ele. Vai deixar muitas saudades, faz parte da minha história e da de Salvador também" contou Conceição. Maria Conceição já chegou a morar em um vagão do trem (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) Cientes da importância histórica do sistema para cidade, teve gente que aproveitou o último dia de operação para fazer a primeira visita ao trem. Foi o caso de Valéria Oliveira, 40, bacharel em direito e Paulo Henrique Sena, 26, design de interiores. "Sempre convidei meus amigos pra vir e nunca rolou. Percebo que tem muita gente que mora aqui e nunca veio. Não queria fazer parte disso e vim visitar", disse Valéria. Paulo Henrique teve os mesmos motivos para sair de casa rumo ao trem. "Moro aqui há anos e nunca tive essa experiência. É um ponto histórico, que eu precisava ver pelo menos uma vez", explicou. Valéria e Paulo Henrique visitaram o trem pela primeira vez (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) Dinalva dos Santos Silva, 68, aposentada que, ao contrário de Valéria e Paulo Henrique, sempre foi figura carimbada do trem, também foi se despedir. Moradora do Uruguai atualmente, ela sempre andou no modal quando residia na zona rural e vinha com sua mãe visitar a família na capital, na época que o trem ainda era movido a lenha. "Nós vínhamos de Terra Nova, Jacu, Bom Jardim. Eu e minha mãe viajamos muito. Tinha o motriz, que era para os granfinos. Para gente, era o trem. A viagem, para nós, que éramos pobres, de roça, era o trem mesmo. Um tempo muito bonito, que fui muito feliz. Trouxe minha neta hoje pra andar de trem e contar nossa história no trem porque a memória é uma riqueza que ninguém pode nos tirar e precisamos passar", declarou 

Impacto histórico

A memória citada por Dona Dinalva também é de Salvador, que teve no sistema ferroviário uma importante ferramenta para o seu desenvolvimento. Segundo o historiador Carlos Nazaré, o trem foi fundamental ao inovar o método de transporte de mercadorias para a cidade. "O transporte que tínhamos era com cavalos, depois veio os transportes marítimos. O trem inovou ao possibilitar, de maneira prática, o transporte robusto de mercadorias do Subúrbio Ferroviário para o centro de Salvador, um meio que não é só importante em um sentido histórico e cultural, mas também economicamente falando", destacou.  Trem foi fundamental ao inovar o método de transporte de mercadorias (Foto: Wendel de Novais/CORREIO) Nazaré falou ainda que o trem foi uma importante conexão entre a cidade e a população do subúrbio. "Ele era fundamental, uma ligação direta entre a Calçada e Alagoinhas, que transformou tanto a maneira como as mercadorias eram transportadas como a forma e a velocidade que as pessoas conseguiam se locomover, se ver, executar tarefas. O trem ajuda a contar a história da nossa cidade", ressaltou. 

Fim conturbado

O Ministério Público estadual (MP-BA) ajuizou na última quinta-feira (11) uma petição em que pede que a Justiça determine a suspensão da paralisação do trem do Subúrbio, marcada a para a segunda-feira (15). A promotora de Justiça Hortênsia Pinho, responsável pela petição, diz que a paralisação deve acontecer de maneira escalonada, com divulgação para a população com prazo mínimo de 30 dias.

Essas sugestões vão permitir uma adaptação melhor dos usuários, muitos dos quais não têm condições para arcar com a diferença do valor da troca do trem por ônibus.

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier