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Gil, o fazedor de mundos

  • D
  • Da Redação

Publicado em 15 de novembro de 2021 às 05:12

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Ontem à noite, passei horas às voltas com as canções do mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras. Sim, canções. Não romances, contos ou ensaios, embora muitas daquelas letras possuam a perenidade e a nobreza reservadas aos poemas. Falo de Gilberto Gil. Por muito tempo impliquei com ele. Com suas canções festivas demais, alegres demais. Com suas entrevistas repletas de frases desconexas, raciocínios enviesados e silêncios acompanhados de um olhar de pasmo.

Mal sabia eu que havia ali um homem sábio e, o mais importante, um homem bom. Gil é um humanista. Aos 80 anos, possui um semblante sereno, como um velho Buda ou um pai de santo. Gosto de observar seu rosto quase sempre sorridente, de quem sorveu o mundo com a avidez dos amantes impetuosos e agora ensaia lentamente uma despedida desse mesmo mundo, talvez pior do que era na sua juventude – ou talvez não.

Muitas das suas canções que escutei ontem envelheceram bem. São versos que expressam sentimentos muito intensos e genuínos. Gil fala de loucura, da gente maluca dos seus retiros espirituais, das moças que conheceu quando chegou no hospício. Em um depoimento que vi recentemente, ele revelou que precisava compor uma canção para Chico Buarque gravar. Então ficou olhando um bom tempo para um copo vazio e a canção saiu naturalmente. O resultado? “É sempre bom lembrar / Guardar de cor / Que o ar vazio / De um rosto sombrio / Está cheio de dor”.

Gil fala também do tempo e da morte, com uma sobriedade e uma elegância que nos enchem de perplexidade. Ao contrário de Caetano, mais intelectualizado, ele é intuitivo, como se seus versos brotassem sem interferência da consciência, numa conexão direta com algo muito sagrado. Essa conexão é evidente em Se Eu Quiser Falar com Deus: “Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar”. Para ao final arrematar:

“Tenho que dizer adeus / Dar as costas, caminhar / Decidido, pela estrada / Que ao findar, vai dar em nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Nada, nada, nada, nada / Do que eu pensava encontrar”. Profundamente cético e ao mesmo tempo de uma religiosidade comovente. Gil cita a palavra “nada” 13 vezes, como num ato de desespero. Como se a resposta, depois de tantos anos de busca, fosse só um vocábulo despido de sentido.

Entre tantas, a minha canção preferida nem é tão conhecida: Pai e Mãe, do Refazenda. Ela me comove de uma maneira que não compreendo e nem sei mensurar. Tendo a chorar toda vez que ouço aqueles versos, talvez porque lembre do meu pai: “Diga a ele que eu, quando beijo um amigo / Estou certo de ser alguém como ele é / Alguém com sua força pra me proteger / Alguém com seu carinho pra me confortar / Alguém com olhos e coração bem abertos / Pra me compreender”.

Gil nunca escreveu livros, como Caetano ou Chico, não contemplados com a imortalidade pela Academia. Injusto? Provavelmente. Mas, para ser sincero, a mim pouco importa. Até porque a ABL historicamente já cometeu as piores injustiças. Como Bob Dylan, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Gil tem a dimensão de um criador, quase no sentido religioso do termo. Um ser superior que concebeu mundos, vozes, sons, ideias, sentimentos e até mesmo um prosaico fim da tarde lilás. Onde o mar arrebenta em mim.