Goró do bom: rota no Centro para beber cachaça, drink e até chopp de vinho

Começamos na Cidade Baixa e terminamos, já trocando as pernas, no Santo Antônio Além do Carmo

Publicado em 29 de março de 2022 às 06:00

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Se você bebe mais que um Opala 72, mas não quer gastar oito conto no litro da gasolina para tomar umas pela cidade, está no texto certo.  Deixe o carro em casa, pois aqui contém um roteiro que todo biriteiro deveria experimentar: bater perna enquanto come água, não necessariamente nesta ordem. Fizemos cerca de três quilômetros de paletada etílica pelo Centro Histórico de Salvador, esta senhora que completa 473 anos. Começamos na Cidade Baixa e terminamos, já trocando as pernas, no Santo Antônio Além do Carmo. Misturamos tudo, desde cachaça, drinks chiques, cravinho e até chopp de vinho. 

Para que este passeio seja tranquilo, vale um conselho especial. Antes da afobação do primeiro gole, cabe um velho hábito da cidade: aquela do santo. Derrame um pouco da pinga no chão, como uma forma de saudar Exu, protetor dos becos, encruzilhadas e ruas da capital. É conselho do próprio Jorge Amado. “A primeira obrigação a se fazer quando nesse solo se põem os pés é dar de beber a Exu para assim lhe conquistar as boas graças, impedindo que ele venha perturbar a festa com suas diabruras e arrelias. Para não escorregar numa ladeira calçada de pedras negras e antigas”, escreveu o romancista, no livro Bahia de Todos-os-Santos. Quem é doido de contrariar?

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Iniciamos a missão às 15h30. Como Exu gosta de uma cachaça, nada melhor que começar este roteiro no Beco dos Cornos, mais precisamente no bar Palácio dos Gatos, pertinho do Plano Inclinado e do Elevador Lacerda. O local oferece mais de 60 tipos de cachaça aromatizadas com ervas e raízes, quase medicinais. Além disso, é o metro quadrado com mais doido na cidade. Quer conhecer o baiano autêntico da velha Bahia cantada por Caymmi? Vá lá. “Aqui é o mesmo que a Igreja do Bonfim. Se vier em Salvador para beber e não tomar uma no Palácio dos Gatos, não conheceu Salvador”, diz Bucetinha, cliente há mais de 30 anos. Foi ele  que sugeriu o sucesso da casa: o CGC,  mistura de canela, gengibre e cravo.  

A cachaça precisa ser conservada na geladeira e tem uma cor que lembra a lava de vulcão, não por coincidência. Sobe um fogo da peste logo na primeira golada (depois da do santo), queimando tudo, mas sem precisar fazer careta já que é docinha e gelada. Dizem os bebedores do local que o CGC levanta defunto e rejuvenesce. Quem afirma é Ronald Aguiar, um ‘jovem’ de 91 anos que toda sexta bate ponto no Palácio. “Para fazer efeito e você nunca brochar, tem que tomar pelo menos três doses. Se eu fosse você nem iria para os outros lugares, ficava logo aqui”, provoca Ronald, cliente há 50 anos.

Fomos obstinados a tomar apenas uma dose em cada lugar, mas é etilicamente impossível. O diabo é que estava tocando Pablo, bicho: “Nosso barzinho, mesa 70, de repente cê entra… De mãos dadas com o seu novo amooooor!”. Aí quebra a guia de qualquer homem apaixonado. Desce uma, duas, três doses de CGC. Um pratinho com carne de fumeiro, moela e passarinha, como é que vai embora? Mas, era preciso. Nos despedimos do Palácio dos Gatos rumo ao Bahia Marina. Contudo, o local ainda estava fechado. 

Recalculamos a rota e seguimos para a Saúde, mais especificamente para o Bar do Léo. Lá, uma iguaria: chopp de vinho. Dá para subir o Elevador Lacerda, pegar o Largo do Pelourinho, a Baixa dos Sapateiros e a Ladeira da Saúde. Dá, inclusive, para desviar o caminho para O Cravinho e tomar uma dose. Será um quilômetro de paletada, suficiente para evaporar um pouco da dor de corno adquirida no Palácio. 

Chegando na Saúde, é só sentir aquele clima de bairro de interior em pleno centro da cidade. Piso de pedra, casas antigas e budegas em cada esquina. O pinga-pinga é inevitável. Suados, nada melhor que um chopp de vinho no Bar do Léo. Como tudo na Bahia termina em música, chegando no local, a surpresa: Léo, dono do estabelecimento, foi integrante da banda Braga Boys, sucesso no início dos anos 2000. É um gesto quase  involuntário dar um murrinho para baixo e cantar “Bomba! Pra balançar isso aqui é bomba!”.  Drinks no Centro Histórico (Foto: Sora Maia) “Basta a turma saber que fui do Braga Boys para cantar esta música e fazer a coreografia [risos]”, diz Léo, enquanto via este repórter fazer a dancinha, uma clara manifestação do teor etílico que já estava na mente.  Voltemos ao vinho. “Salvador ainda não tem a tradição do chopp de vinho. Trouxe de presente para nossa capital. Ele se encaixa perfeitamente com nossa cidade, pois é refrescante, parece um drink, mas não é. Tem 6% de álcool”, disse Léo.

A bebida é tão nova para o costume de Salvador, que o ex-Braga Boys precisa trazer os barris com  do Paraná. O vinho é bem leve, estupidamente gelado e cremoso como um chopp. A ideia era apenas experimentar o vinho e seguir adiante. Quando a gente já estava se ajeitando para partir, rumo a novas experiências etílicas, Léo oferece o caipilé. O nome já diz tudo. Uma caipirinha, mas com um picolé de fruta enfiado na taça (com o devido “lá ele”). 

Não satisfeito, ele oferece  três sabores: morango, limão siciliano e cajá. No pé do ouvido, a fotógrafa Sora Maia sussurra que “não vamos sair vivos desta pauta”. 

Turbinados Após a despedida do Bar do Léo, o saldo era de três doses de CGC (copo de 150 ml), um chopp de vinho de 500 ml, além de três caipilés de 300 ml, cada. Quase dois litros de goró, bicho. O sol ainda estava se despedindo, quando pegamos mais  900 metros de caminhada, voltando ao Pelourinho, mas especificamente ao Restaurante Maria Mata Mouro. Descemos a Saúde, pegamos a Avenida JJ Seabra e subimos a Ladeira do Pelô até a Rua da Ordem Terceira. 

No meio das edificações históricas do Pelourinho, o Mata Mouro parece a entrada de Nárnia. Lá dentro, um verde inesperado, com jardins, árvores e fontes de água que fogem do cenário de concreto. Aliás, o que não falta é cenário no lugar. Cada pavilhão do casarão do século XVIII tem um ambiente diferente. É difícil saber se bebe ou contempla as obras de arte assinadas pelo artista Carlos Kahan espalhadas pela casa, que contém uma parede colonial tombada logo na entrada. 

Melhor ainda é saber que o artista frequenta o lugar. Sentado no quintal da casa, onde fica o jardim, Kahan parece o personagem de um conto literário. Com um tapa olho, o artista levanta, sorri e diz: “Bem-vindo ao lugar onde se bebe e contempla a arte”. Tudo tem história na casa, reaberta em janeiro deste ano, após dois anos fechada por conta da pandemia. 

Três drinks foram apresentados no bar que leva o nome de um personagem da obra de Hilda Hilst, Tu não Te Moves de Ti. O primeiro, o Xote do Amor, uma entrada oferecida aos clientes num pequeno copo de coração, acompanhado de um bolinho de arroz. Ele é feito com cachaça, xarope de clitória e sumo de limão. Parecia que finalmente ficaríamos apenas na degustação. Ledo engano. Logo em seguida, dois drinks carregados de axé e outro cheio de tradição no Centro Histórico: Águas de Oxalá, Deburu e Cravinho Smash. Desta vez, o chip travaria. 

O gostoso é saber que cada drink tem uma história. O Deburu, por exemplo, é uma homenagem a Omolu. "Deburu é a comida de milho estourado (pipoca). Omolu cresceu com feridas e Iansã o presenteou com  uma roupa de palha. Um belo dia, ele foi dançar com esta vestimenta e Iansã soltou um sopro. A roupa subiu e as chagas caíram e se tornaram pipoca. Fizemos esta representatividade no drink”, explica Dan Morais, chef de bar que assina a carta de drinks. 

Agora o mais legal. O Deburu leva vodka de pipoca, xarope de fava de aridan, limão e aquafaba. Por cima, pipoca caramelizada que pega o gosto da bebida.  Aconselhamos deixar os milhos estourados para o final, pois é possível sentir o gosto da bebida enquanto mastiga a pipoca. É comer água, literalmente.

Águas de Oxalá também não foge do lado histórico. Leva Braggi Spiced Rum, suco de coco com limão, xarope de manjericão, bitter de cacau e pimenta. “Já ouvi falar uma vez que as Águas de Oxalá pacificam o ambiente.  Na mesma hora falei que queria beber este drink. ‘Quero beber as águas de Oxalá’. Casou com tudo que eu esperava. É um drink que vou fazer propaganda para todo mundo. É maravilhoso. Minha vida agora é beber Águas de Oxalá e voltar para casa feliz da vida”, diz Sora Maia, nossa fotógrafa e companheira etílica. 

O problema é que esta empolgação toda custou caro e o soldado pediu PPU. “Ô, véi, não aguento mais beber. Depois do Carmo acabou, né?”, completa Sora, quando o relógio apontava já 19h30. Ainda deu tempo de terminar o cravinho com  xarope de manjericão, limão e bitter de laranja. 

Mais 800 metros até o Bistrô das Artes para a famigerada saideira. São 11 minutinhos, descendo novamente a ladeira Largo do Pelourinho e subindo a do Carmo. Na frente da Igreja do Carmo está a última parada desta comemoração diferente no aniversário da cidade. Nada melhor que aquela paisagem dos casarões, com vista panorâmica da Baía de Todos-os-Santos. No gran finale, um drink chamado Nativa, bem sugestivo para uma cidade tão raiz. “Seus insumos trazem um abraço ao nosso país:  cachaça, mel de abelha nativa, capim santo e limão siciliano. É uma homenagem a Salvador e ao bairro do Carmo”, explica Adriana Queiroz, gerente operacional do lugar. 

Enfim, o fim. Depois da saideira, nada melhor que pegar um Uber e se picar para casa. Mas é Salvador, bicho. E Salvador é a capital do autoengano. Depois da saideira, vem a ‘sipicadeira’ e a ‘de jair’. “Meu amigo, venha que o Bahia Marina abriu”, diz uma amiga, pelo zap. Essa capital não quer ver ninguém bem. Quer seus filhos na rua, na bagaceira. Fui para casa? Não! (mas Sora foi). 

No Deck Marina, bem em frente ao mar que reflete a lua, amigos bebem, conversam e ouvem música. “Traga uma Sereia Iara para ele!”, grita  Juliana Tavares, criadora do espaço. Ah, a sereia… Um drink cor de sangue, onde a mistura de mel de açaí, vodka, ovo e licor de gengibre termina com o rosto da sereia Iara esculpida numa folha de arroz. Naquela hora, beber mais ou menos não fazia mais diferença nenhuma. Depois, teve o drink Juliana e aí  eu já não sabia mais onde estava. Só tinha uma certeza: uma noite de bebedeira na cidade da Bahia parece durar 473 anos. Axé e tim-tim, Salvador!

O que comemos e bebemos

Palácio dos Gatos

CGC    Cachaça que mistura canela, gengibre e cravo (R$ 2,5, a dose)  Tira-gosto    Mix de carne de fumeiro, moela e passarinha (R$ 15)

Bar do Léo

Chopp de vinho    Pode ser tinto ou branco (R$ 9,90) Caipilé   Caipirinha com picolé da fruta (R$ 17) Camarão encapotado  Oito unidades (R$ 20) Bolinho de queijo  Oito unidades (R$ 16)

Maria Mata Mouro

Xote do Amor  Grátis Cravinho Smash   Cravinho, xarope de manjericão, limão e bitter de laranja (R$ 25) Deburu   Vodka de pipoca, xarope de fava de aridan, limão, aquafaba e pipoca (R$ 25) Águas de Oxalá  Braggi Spiced Rum, suco de coco com limão, xarope de manjericão, bitter de cacau e pimenta (R$ 25) Lambretas Mata Mouro   R$ 34,90 Vinagrete Morna de Polvo e Camarão  R$ 48,90Bistrô das Artes

Nativa   Cachaça, mel de abelha nativa, capim santo e limão siciliano (R$ 18)

O Cravinho

Cravinho   Dose: R$ 5 | 1/2 litro: R$ 20

Deck Marina

Sereia Iara   Mel de açaí, vodka, ovo e licor de gengibre (R$ 35) Juliana   Vodka, limão, xarope de manga com pimenta, licor de laranja, floaty de vinho e espuma de gengibre (R$ 38)

O Aniversário de Salvador é um projeto do Jornal Correio com patrocínio do Hospital Cárdio Pulmonar, Wilson Sons, Salvador Bahia Airport e Unifacs, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador, FIEB e Sebrae, apoio de Suzano, Abaeté Aviação, Sotero, Shopping Center Lapa, Jotagê, AJL, Comdados.