Governo desiste de demolir Terreiro no Lobato para obras do VLT

Decisão foi noticiada depois de o CORREIO publicar reportagem que mostra locais ameaçados por duas obras estaduais

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  • Fernanda Santana

Publicado em 11 de fevereiro de 2020 às 17:30

- Atualizado há um ano

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O Terreiro Ilê Axé Obá Logun Silé, no bairro do Lobato, não será mais demolido. O templo religioso daria lugar a um trecho do Monotrilho - que substituiu o projeto inicial do Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT) – de 19,2 quilômetros que ligará os bairros do Comércio, em Salvador, e a Ilha de São João, em Simões Filho. No final de semana, o CORREIO contou histórias de terreiros em Salvador, entre eles o Logun Silé, que estavam ameaçados pelas obras do Monotrilho e da Avenida 29 de Março e narrou a resistência das lideranças religiosas. 

O babalorixá Pai Márcio de Ayrá recebeu, nesta terça-feira (11), o comunicado oficial do consórcio Skyrail, composto pelas empresas BYD Brasil e Metrogreeen que, numa parceria Público-Privada com o governo do estado, implantarão o sistema. Por volta das 10h, um engenheiro do grupo bateu à porta do terreiro e deu a notícia para o babalorixá.“Fiquei bastante feliz. A agonia da deslocação, a preocupação acabaram”, contou, ao CORREIO.O Terreiro aberto há 11 anos por Pai Márcio seria apenas um dos demolidos na cidade. Na reportagem publicada pelo CORREIO, mostramos que três templos foram destruídos para dar passagem à Avenida 29 de Março, segundo a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder), enquanto outros dois aguardavam os tratores.

Algumas lideranças religiosas temiam o processo de indefinição, enquanto assistiam à demolição de terreiros de babalorixás conhecidos e viam a derrubada de vegetação sagrada dos seus próprios templos, por exemplo. “Cada verde que tiram, é como se tirassem uma parte de mim. O que estou podendo fazer é replantar. Já conversei com eles [do governo]. Disseram que não podiam fazer nada”, lamentou Pai Cica, babalorixá do Terreiro Alê Axé Ayrá, cuja área verde sagrada foi parcialmente destruída e ocupada por lama e dejetos de obras.No Subúrbio Ferroviário de Salvador, uma das regiões com maior concentração de terreiros da capital baiana, o Ilê Axé Obá Logun Silé foi comunicado da demolição em novembro passado. 

Apenas no Lobato, eram 29 terreiros, quando o Centro de Estudos Afro-Orientais fez o último levantamento, em 2006. Na visita desta terça, o engenheiro tirou fotos do templo e garantiu que ele permaneceria onde está. A previsão é que, dos 32 metros de extensão da Casa, três ainda precisem ser demolidas, contou o babalorixá. Duas famílias vizinhas à direita do terreiro também não serão mais desapropriadas.

Antes, a previsão era de que, naquela rua, 23 famílias fossem retiradas de seus endereços. As casas haviam sido marcadas por números - que seriam os códigos das demolições - em março do ano passado. 

A Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado (Sedur) foi procurada pelo CORREIO nessa terça-feira (11) para explicar os detalhes da mudança, mas não respondeu até o momento. A pasta também não havia apresentado o traçado completo do Monotrilho. A reportagem ainda não conseguiu contato com o consórcio responsável pela obra. 

“O povo [de santo] me ligou, já estava todo mundo querendo fazer passeata, caminhada”, contou Pai Márcio.

'É a garantia da perpetuação da nossa religiosidade' Desde o início das obras da Avenida 29 de Março, que faz a ligação da BR-324, na altura de Águas Claras, com Piatã, na orla da capital, a Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA) encaminhou ao Ministério Público da Bahia (MP-BA) quatro ofícios em que cobra respostas do governo sobre os impactos das obras aos terreiros. O caso de Pai Márcio fundamentava um deles. 

O presidente da associação, Leonel Monteiro, comemorou a notícia de que o terreiro de Pai Márcio não será demolido. Hoje, a estimativa da AFA é de que existam, na capital baiana, dois mil terreiros. “A gente recebe com alegria, primeiro porque vemos que as instituições estão funcionando, vemos também a força da imprensa em noticiar – por isso, precisamos de uma imprensa livre e forte – e porque um terreiro de Candomblé é guardião de um conjunto de saberes e fazeres ancestrais que vieram para o Brasil e precisam desses espaços para existir”, disse.O presidente do Conselho Municipal de Comunidades Negras, Evilásio Bouças, também agradeceu. “Nós, que vivemos na luta em defesa dos terreiros e no combate à intolerância religiosa, ficamos felizes e agradecidos. Quando a gente consegue ser contemplado, é motivo de regozijo, de satisfação”, disse.

“Se houvesse uma lagoa, a obra  esbarra nos órgãos ambientalistas. Por que não proteger o sagrado e nossa religião? A gente fica satisfeito com essa decisão de devolver o terreiro”, completou Ribamar Daniel, presidente da Sociedade Cruz Santa do Ilê Axé Opô Afonjá.

A Conder, órgão do governo do estado responsável pela 29 de Março, disse que está atenta a minimizar os impactos em áreas sagradas. “A Conder esclarece que, desde o início, já na elaboração de seus projetos e depois, durante a sua execução, nas áreas de mobilidade e infraestrutura urbana, está atenta para minimizar os impactos sempre que encontra áreas destinadas ao sagrado, a exemplo de templos, igrejas, terreiros de candomblé, entre outros”, diz a nota.

Terreiros sem documentação  Hoje, um dos principais problemas enfrentados pelos terreiros é a falta de documentação que prove a posse. Por isso, muitos deles podem ter direitos prejudicados. Não há nenhum programa de garantia da posse ou proteção aos terreiros. Exceto um decreto, sancionado em 2014 pelo Prefeito ACM Neto, que possibilita aos terreiros terem isenção fiscal. 

Segundo o coordenador de ações transversais da Secretaria Municipal da Reparação (Semur), Leomar Borges, só 221 terreiros – dos mais de dois mil terreiros de Salvador e dos 724 cadastrados na pasta – conseguiram isenção por apresentar a documentação devida. É possível cadastrar um terreiro  na sede do Conselho Municipal das Comunidades Negras, na Rua Carlos Gomes, no prédio do Clube de Engenharia.“Durante muito tempo, os terreiros ficaram às margens, é o que chamamos de racismo institucional. Até você convencer que essas pessoas vão ter direitos... é um processo”, afirmou Borges.A secretaria planeja fazer um novo levantamento de terreiros existentes na cidade, novamente em conjunto com o CEAO.  Não há estimativa de quantos terreiros foram demolidos ao longo dos anos.