Há 10 anos, Antônio Pitanga busca apoio para filme sobre Revolta dos Malês

'Um negro baiano quer contar a sua história', diz ele, que roda longa com nomes celebrados do cinema e não desiste diante das dificuldades

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  • Fernanda Santana

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 10:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Vantoen Pereira Jr/Divulgação

O ator baiano Antônio Pitanga, 82, não se constrange com as negativas que recebeu na vida: “Se eu trouxesse o ‘não’ para mim teria ficado pelo caminho.” A cada não que recebe, cria mais força para perseguir o sim. É o que Pitanga tem feito há dez anos na busca por financiamento para o filme Malês, que trata sobre a Revolta dos Malês, rebelião de escravizados islâmicos que ocorreu em Salvador, em 1835. Antônio Pitanga quer contar a história que traz marcada na pele. 

O longa metragem sobre o levante, o maior promovido por cativos no Brasil colonial contra a escravidão e pela liberdade religiosa, faz parte dos planos de Pitanga desde os anos 80. Era uma ideia compartilhada entre ele e o diretor Glauber Rocha (1939-1981), de quem era parceiro de trabalho e amigo: “Glauber, que falava muito disso, morreu. Mas esse projeto ficou na minha memória”. 

Há dez anos, a ideia ganhou forma. Nome forte no cinema nacional, Antônio Pitanga começou, então, a “bater em portas” na procura do sim.  Além de dirigir, em Malês ele vai interpretar o griô (o mais velho de uma comunidade africana) Licutã. 

Para fazer cinema no Brasil, não basta vontade, mesmo para Antônio Pitanga, que atuou em mais de 50 filmes e mais de 30 novelas e séries. É preciso correr atrás de editais e apoios:“Malês custa R$ 9 milhões. É um filme de época, precisa de um trabalho para isso. Estou apelando para que haja um apoio. Está mais do que na hora de tocar esse projeto de Brasil”. O diretor diz que cerca de 90% do elenco serão atores negros. “Não é um filme sobre o negro coitadinho, é o filme sobre o negro pensador”. Recontar a história dos Malês é uma questão de identidadeNa Bahia onde hoje busca patrocínio Antônio Pitanga nasceu, iniciou a carreira e traçou parcerias que redefiniram seus rumos artísticos, como aquela que teve com Glauber Rocha. O ator nasceu no Pelourinho, cresceu no Dois de Julho e protagonizou marcos do Cinema Novo, como Barravento e Baía de Todos os Santos. Inclusive, foi rebatizado Antônio Pitanga depois do seu trabalho neste filme. Até então, era Antônio Luiz Sampaio. “Não basta abrir as portas do turismo, sem se perguntar que Bahia é essa, uma pequena África, onde surgiu o primeiro candomblé, aconteceu o primeiro levante...”, acredita.Por isso, para ele, é tão importante compartilhar sua visão sobre a Revolta dos Malês. Parte do elenco do filme Malês, que terá Camila e Rocco Pitanga no elenco (Vantoen Pereira Jr/Divulgação) O filme será dividido entre o Recôncavo e Salvador, mas também terá cenas gravadas em Maricá, no Rio de Janeiro. O roteiro é de Manuela Dias (baiana e autora de várias tramas de sucesso da Globo, como a novela Amor de Mãe, por exemplo) e a produção de Flávio Tambellini. No elenco, estão confirmados nomes como Camila Pitanga e Rocco Pitanga - filhos de Antônio -, Lázaro Ramos e Patrícia Pillar. 

As filmagens começaram no início do ano, antes do valor suficiente para concluir o longa ter sido arrecadado. Pitanga diz que não pretende parar. Por enquanto, há 30% do longa metragem concluído: as cenas filmadas no Rio de Janeiro.  “As cenas mais importantes estão em Salvador, algumas em ruas do Pelourinho”, diz. Atores baianos como Heraldo de Deus e Edvana Carvalho farão parte do elenco. O coreógrafo Zebrinha participará do filme, auxiliando no movimento corporal dos atores.  

Em janeiro de 2022, Pitanga e equipe desembarcam em Salvador para concluir o filme. Não há outra opção na cabeça desse ator que conjuga o futuro no presente:“Vinicius de Moraes falava que o bom tempo é o agora. Tenho que plantar o futuro hoje. Se ficar esperando, não vai chegar. Preciso trazer o futuro para dentro de mim”. História descoberta na sala de aula O primeiro contato de Pitanga com a Revolta dos Malês foi na adolescência. Ele descobriu em sala de aula o levante dos escravizados islâmicos que tentaram a liberdade na Salvador de 1835. O movimento terminou com a morte ou a prisão dos que se espalharam pelas ruas:“Quando Pitanga conhece a história dos malês, é um negro baiano que tem conhecimento da sua história, que quer contar sua história e tem uma profissão que possibilita abrir telas para isso”. "Um negro baiano quer contar sua história", diz Pitanga (Foto: Vantoen Pereira Jr./Divulgação) Foi depois de assistir Amistad (1997), de Steven  Spielberg, que Antônio Pitanga  decidiu gravar seu filme. O longa do diretor americano retrata a revolta de escravizados contra seus algozes num navio, em alto mar. “Aí comecei a procurar, conversar com pessoas e tudo isso reavivou minha vontade. Percebi que uma das mais importantes histórias negras, a Revolta dos Malês, ainda não estava sendo contada”, afirma.Uma das bases teóricas do filme será o livro A Rebelião Escrava no Brasil, do historiador e professor baiano João José Reis, que já foi ao Rio de Janeiro realizar um workshop com a equipe, segundo Pitanga. A obra de 1986 é um clássico sobre a revolta dos negros muçulmanos que pretendiam abolir a escravidão de africanos no Brasil. 

O livro discute os mais variados aspectos da vida dos malês que organizaram a revolta, a partir da relação entre religião e identidade étnica. “A Bahia é o nascedouro do conhecimento”, diz o ator. 

Filme esbarra em dificuldades porque quer "consciência" Pitanga sempre esteve em busca da própria história. Durante a Ditadura Militar no Brasil, não se exilou em países europeus. Por dois anos, percorreu países do norte africano para descobrir de onde vinha e quem era. Continua em busca de descobertas. A investida no filme sobre a Revolta dos Malês também é um símbolo disso. As dificuldades para conseguir apoio financeiro, acredita Pitanga, tem a ver com um projeto que despreza a consciência e a história. “Como  conseguir apoio desses governantes atuais para um filme desses? Não se quer consciência. Mas somos lutadores e acreditamos. Quero que esse filme seja um movimento baiano”, afirma  Pitanga.O tempo de ficar de braços cruzados inexiste para ele: “Você tem que plantar”.  Filme Malês começou a ser gravado no início deste ano (Foto: Vantoen Pereira Jr./Divulgação) Malês será o segundo longa metragem que Antônio Pitanga dirige. O primeiro, Na Boca do Mundo, de 1979,  tem Norma Bengell e Milton Gonçalves no elenco. A narrativa traz como protagonista o próprio diretor, que vive um pescador que quer deixar a pequena cidade onde vive por falta de perspectivas. “De lá para cá, o Brasil foi redemocratizado, mas a cultura não é um projeto de nação”, pondera.“O saber alimenta a criatura, mas não há um olhar generoso para ele, para a cultura”, ele diz. O cinema, no entanto, sobrevive, com ou sem o financiamento desejado.  “Continuamos a fazer. As pessoas vão continuar fazendo cinema mesmo sem apoio”, sentencia. O ator e diretor aprendeu desde cedo a continuar, apesar de tudo, “fazendo”. Ainda assim, segundo ele, a pauta da equidade racial ganhou força no mundo, mas a “conta ainda não fecha”.  “Hoje, temos um universo de negros no cinema. Há muito negros e negras chegando em pontos estratégicos. Mas ainda não fecha a conta. Proporcionalmente, ainda estamos devendo, são necessárias muitas lutas”, reflete.Na adolescência em Salvador, Pitanga se esgueirava pelas frestas de teatros para assistir espetáculos onde “negros não eram permitidos. Mas o “não” nunca pertenceu a ele. O sim o interessa mais.