Humilhados e ofendidos

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  • Paulo Sales

Publicado em 10 de janeiro de 2022 às 05:05

- Atualizado há um ano

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Todas as noites, um senhor dorme num banco do ponto de ônibus em frente à minha casa. Eu o observo chegando lentamente da rua de dentro. Tão lentamente que muitas vezes me distraio ou saio da varanda e quando volto ele ainda por lá, tateando nos muros, segurando sua bengala. É praticamente cego e sofre de alguma deficiência na perna, daí a dificuldade.

Soube que esse senhor poderia não estar passando por essa situação. Ele recebe uma aposentadoria e de tempos em tempos é visto tomando uma bebida no bar da esquina. Mas, por conta da cegueira e da ingenuidade, o dinheiro some. Ele tem parentes, com quem não se dá bem. Por isso vai parar na rua. É um homem de pouco mais de 60 anos.

Outro dia passei por ele. Aos poucos, começa a adquirir o aspecto dos que vivem muito tempo ao relento. As roupas encardidas, os joelhos enegrecidos pela fuligem dos ônibus, o corpo gasto, o semblante tomado por desalento e exaustão. Ele me passa a sensação de uma enorme vulnerabilidade. Nas noites de chuva, se enrola num cobertor grosso. Nas de calor, levanta, anda e fuma. Está à mercê dos ratos, das baratas e de eventuais assassinos de mendigos.

Sinto por ele um misto de compaixão e incompreensão. Não haveria outra possibilidade? Um abrigo para idosos, um acordo com a família que não o quer, um quartinho em algum canto que possa pagar com a sua aposentadoria? Não deve ser tão simples. A vida é de uma complexidade assustadora.

Miséria é um troço aviltante. Uma doença que se alastra como vírus em um país destroçado. Um contingente enorme de humilhados e ofendidos, amontoados sob marquises, dormindo em camas de papelão, pedindo trocados no sinal. Alguém já disse que a desigualdade é a nossa chaga, a nossa sina, o mais perfeito emblema do nosso fracasso moral. Está certíssimo.

Pobreza, miséria e desigualdade não são termos anacrônicos, como é a escravidão (por mais que ela ainda permaneça). Elas se reproduzem ao infinito, como um moto-perpétuo. Passados mais de 5 mil anos do que chamamos civilização, a humanidade ainda é capaz de transmitir a pobreza de uma geração a outra, de manter em realidades estanques gente que tem muito e gente que tem nada.

Continuamos compartilhando características semelhantes aos tempos da servidão coletiva no Egito ou dos índios dizimados por europeus na América. Em que avançamos? Na tecnologia certamente. No domínio da agricultura e da pecuária, na criação de indústrias, nas vacinas que evitam epidemias, nas liberdades individuais. Houve melhorias, é evidente.

Mas por que, passado todo esse tempo, não chegamos à cura da indigência? Por que – e reconheço nesses questionamentos uma tola ingenuidade – a injustiça permanece sendo o motor da nossa travessia? Com raras exceções (sendo o keynesianismo a principal delas), parece não haver um conceito de sociedade que possa nos conduzir a um destino para além da iniquidade. O comunismo foi um fracasso, o capitalismo prossegue em sua rotina de exclusão, o fascismo de vez em quando dá as caras, como agora.

Regimes autoritários ou pretensamente democráticos permanecem arrastando milhões de pessoas rumo a uma vala comum, onde a escassez é a regra. No Brasil, no Congo, em Bangladesh, nas periferias das cidades ricas, na quase totalidade das cidades pobres, o horizonte é só um borrão espesso, refratário à ideia de felicidade. Vidas inteiras assim, desperdiçadas como pão embolorado.