Imponderável de Almeida – As execráveis pequenas tragédias do cotidiano

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  • Da Redação

Publicado em 24 de março de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Implacável e absolutista, primeiro e único, o imponderável impera. O que poderá nos acontecer na próxima esquina? Ou no final do ano que vem? Ou no escurinho do cinema? Nelson Rodrigues – gênio! – criou o personagem Imponderável de Almeida, o dono de tudo – sabia todas as zebras que rolariam nos jogos de futebol e, inferi depois, também fora dos estádios. Vivemos sob a égide dessa criatura abominável.

As tragédias são lamentadas e lamentáveis – e devem ser – mas estão banalizadas pela repetição. Tragédias nos petrificam, mas sabemos – está carimbado em nosso inconsciente coletivo – que outras tragédias virão – e essa certeza não nos imobiliza, e que bom que não nos imobiliza – a vida não nos dá garantia de nada – é pegar ou largar – e, claro, pegamos e fazemos a parte que nos cabe, a de sobrevivermos custe o que custar. O resto não é bem da nossa alçada – só nos resta ‘zecapagodinhar’.

O que eu não consigo entender de fato é o sentido aleatório das pequenas, às vezes ridículas, tragédias do cotidiano. Por que que diabos pássaro sacana, saído do nada, caga na nossa cabeça em pleno e radiante sol da manhã? Costumo chamar esses eventos inusitados de ‘pegadinhas torpes’. Não mudam o curso da história – mas por que se repetem ad nauseam?

Vivi ‘ene’ histórias assim, e preciso fazer grande esforço de edição para selecionar duas – pura coincidência, ambas em São Paulo. 1. Anos 1980. Embarco para Madri. É minha primeira viagem internacional. ‘Gauche’ na vida, voo pela vagabundérrima Lanchile. Sento na primeira fila, na janela. Ao apertar o cinto, ele se desprende da lateral da cadeira. Reclamo à aeromoça. Ela afirma: - O voo está lotado, o senhor não poderá embarcar assim! Num átimo, atei o cinto de forma bastante ‘armengada’ – como não embarcar, bitch!!!! – e  singrei o Oceano Atlântico. Voei 13 horas sem cinto de segurança algum. Talvez fosse o primeiro a morrer em caso de acidente – ou, quiçá, ser o único sobrevivente.

2. Anos 1990. Fechei conta em certo banco e joguei dois cheques, sem rasga-los, no saco de lixo. Anos depois, ao tentar comprar, a crédito, certo eletrodoméstico, pasmei-me: - O seu nome está sujo! Retruquei: - Como assim? Sempre sou bom pagador. O vendedor, cínico, disparou: - Ah, tá! Resolvi apurar essa kafkiana ocorrência. O que descobri me estarreceu: alguém furara o saco de lixo que o porteiro deixou na porta do prédio onde eu morava, pegou os cheques,  rabiscou a minha assinatura, e fez comprinhas de valores consideráveis. [À época – não sei se esse absurdo ainda vigora – o banco reabria a conta caso algum cheque assinado pelo ex-cliente aparecesse em cena até um mês depois desse fechamento. Reabriram minha conta, sem me avisar, o cheque falsificado, e, claro, sem fundos, caiu no setor de compensação e me detonaram – Bertolt Brecht tem razão: - Pior que o assalto a um banco é a fundação de um banco].

Perguntinha transcendental: já não bastam as grandes tragédias que nos apoquentam e nos devastam, meu sinhô?