Imunidade à dengue pode proteger contra zika, diz pesquisa da Ufba

Estudo do Instituto de Saúde Coletiva é o primeiro do mundo a provar relação

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  • Thais Borges

Publicado em 9 de fevereiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

No auge da epidemia do zika vírus, em 2015, moradores de Pau da Lima viram a maioria dos seus vizinhos ser infectada pela doença. Só no bairro, a taxa de infecção chegou a 73%. O que eles não imaginavam é que, quatro anos mais tarde, as descobertas sobre como a doença se manifestou ali se tornariam referência para o combate à zika no Brasil e no mundo. 

Em meio ao aumento do número de casos de dengue no estado – que, esta semana, chegou, inclusive, à confirmação de um surto em Feira de Santana –, os baianos podem ter uma boa notícia: pessoas que tiveram dengue e que adquiriram imunidade têm menor risco de transmissão do zika vírus. 

Essa é a conclusão de um estudo divulgado nesta sexta-feira (8), na revista Science, uma das mais prestigiadas publicações acadêmicas. A pesquisa foi realizada pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba); pelo Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), através do Laboratório de Patologia e Biologia Molecular, e por parceiros internacionais como a Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, em New Haven, nos Estados Unidos, com o pesquisador Albert Ko. 

É a primeira vez que um estudo investiga a relação entre as doenças a partir da realidade de uma comunidade. Os pesquisadores acompanharam 1.453 moradores do bairro de Pau da Lima, em Salvador, entre março e outubro de 2015. Dessa amostra, o percentual de pessoas que contraiu o vírus da zika no período de surto da doença chegou a 73% do total. 

Desse total, o estudo revelou que apenas um terço dessas pessoas manifestou sintomas – e eles foram leves. Não houve nem mesmo febre associada ao vírus zika, de acordo com o coordenador da pesquisa na Bahia, Federico Costa, professor do ISC. “Nós fizemos algumas perguntas que diziam que alguns fatores poderiam favorecer ou desfavorecer a infecção do zika vírus. Observamos que as pessoas que tinham tido infecção por dengue, ou, mais especificamente, tinham anticorpos contra dengue, estavam mais protegidas. Esse foi nosso primeiro achado”, diz o professor Federico.  O bairro de Pau da Lima é acompanhado pelos pesquisadores do ISC desde 2003 (Foto: Divulgação/ISC) Vacina natural Além disso, mesmo com uma alta taxa de infecção, logo houve uma diminuição nos casos. “Então, esses dados sugerem que essa infecção pelo vírus zika poderia estar sendo como uma vacina natural. Ou seja, uma futura imunidade para futuras infecções do mesmo vírus de zika”, explica o professor. 

A terceira conclusão do estudo foi de que, embora a taxa de infecção tenha sido elevada na comunidade, não foi um percentual homogêneo. Enquanto em algumas localidades, até 90% dos moradores foram infectados, o número foi bem baixo em outras áreas. Isso sugere que essas ‘subáreas’ onde as pessoas não foram infectadas podem ser possíveis locais de entrada para o vírus no futuro, já que esses moradores ainda são vulneráveis. 

O bairro de Pau da Lima é acompanhado pelo ISC desde 2003, com pesquisas a respeito de outras doenças, como a leptospirose, e a própria dengue. Foi justamente por já fazer um acompanhamento prévio, ao longo de todo esse tempo, que os pesquisadores conseguiram acompanhar todas as etapas do surto de zika, em 2015: antes, durante e depois. 

Segundo o professor Federico Costa, a comunidade foi escolhida por sua mobilização social, através de entidades como associações de moradores, e porque tinha uma alta incidência de leptospirose. O professor Federico Costa, do Instituto de Saúde Coletiva da Ufba, coordenou a pesquisa na Bahia (Foto: Divulgação/ISC) “Pau da Lima é representativa das comunidades urbanas mais vulneráveis no Brasil e no mundo. O que a gente faz nesse local serve como modelo para outras áreas do Brasil e do mundo”. Os participantes do estudo tinham que ser mais velhos do que cinco anos de idade, morar na comunidade e dormir pelo menos quatro noites no local. Antes do surto de zika, cerca de 80% dos moradores já tinham sido infectados por dengue em algum momento da vida. “A colaboração das pessoas que participaram dos estudos e das associações de moradores tem um impacto muito grande para a saúde”, completa o professor.  O estudo foi conduzido com pouco mais de 1,4 mil moradores de Pau da Lima (Foto: Reprodução/Revista Science) Todo o material coletado foi processado na Fiocruz Bahia. "Mostramos que trabalhando de forma organizada, em parcerias, você pode aumentar o conhecimento científico, gerar evidência para tomada de decisões políticas futuras e formar e capacitar recursos humanos", destacou o pesquisador Mitermayer Galvão dos Reis, da Fiocruz Bahia.

Outras linhas Atualmente, os pesquisadores continuam com outras linhas de investigação. Entre elas, estão o desenvolvimento das crianças que nasceram no período do surto da zika, e a possibilidade de uma infecção por zika proteger da dengue no futuro. 

A partir de agora, a pesquisa deve influenciar mais estudos na área. Uma das possíveis repercussões deve ser no campo das vacinas. No Brasil, já existe uma vacina contra dengue aprovada, enquanto outras estão sendo testadas. 

“O fato de que anticorpos contra a dengue podem prevenir a zika poderia sugerir que essas vacinas de dengue poderiam ser efetivas contra a zika também”, diz o professor Federico. Além disso, os dados do estudo devem ser utilizados para monitorar as previsões de possíveis momentos de reintrodução do vírus zika. 

A avaliação dele é que a publicação do estudo coloca o ISC e a Fiocruz entre as principais instituições de pesquisa do mundo.“Esse trabalho foi feito com pessoas daqui, estudantes de Salvador, mostrando como o trabalho aqui é de elevada qualidade. E esses dados mostram a nossa realidade, inclusive o quão elevada foi a transmissão e que a nossa experiência de dengue pode ser uma barreira contra a zika também. Se a pessoa tem barreira contra infecção de zika, pode ter barreiras contra as doenças que a zika causa, como doenças neurológicas e microcefalia em crianças”, pondera o professor Federico. Em toda a Bahia, até quinta-feira (7), eram 1.533 casos suspeitos de dengue em 2019 – um aumento de 134% com relação ao mesmo período do ano passado. 

O estudo está disponível no site da revista Science e em PDF (ambos em inglês). "O estudo propicia um avanço no conhecimento cientifico. Essa é uma informação extremamente valiosa, principalmente para o desenvolvimento de vacinas. Agora, surgem alguns desafios como identificar quais são as moléculas que induzem a produção de anticorpos que permite essa reação cruzada protetora", completa o pesquisador Mitermayer Galvão dos Reis, da Fiocruz Bahia.