Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado, une leveza e profundidade

Esgotado, premiado romance do autor baiano será adaptado para o cinema e traduzido para vários países

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  • Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil

Entre o Farol de Itapuã e a casa onde viveu o poeta Vinicius de Moraes nos anos 70, um rapaz passeia com seus cães. Um deles, com deficiência nas patas traseiras, corre ao impulso de uma cadeirinha de rodas. Tranquilo e inacreditavelmente anônimo, ali segue Itamar Vieira Junior, 41, autor baiano que ocupa há meses as listas dos livros mais vendidos do país e é presença cativa na imprensa europeia com seu primeiro romance, Torto Arado, que em breve ganhará adaptação para cinema e TV.

A versão audiovisual de Torto Arado, cujos direitos foram adquiridos pela produtora Paronoid BR, terá direção de Heitor Dhalia, responsável, entre outros, pela adaptação de O Cheiro do Ralo, romance de Lourenço Mutarelli. Itamar conta ter participado de conversas informais com os roteiristas, ao longo de 2020, mas desconhece se será um longa ou uma série. “Por conta do estado de emergência motivado pela pandemia, o setor audiovisual foi um dos mais prejudicados, então as coisas têm caminhado lentamente”, diz.

Fenômeno de público e crítica, o escritor faz questão de manter, tanto quanto possível, um cotidiano comum, cuidando de suas plantas, dois cachorros e quatro gatos. Estrelismo é palavra que nunca coube no dicionário que rege sua vida, cada vez mais atribulada —no dia em que fez as fotos para o CORREIO, já havia recebido equipes do UOL e da Vogue. Focado na literatura, é a ela que dedica todo o tempo livre, entre os muitos compromissos literários que acumula com o trabalho como analista do Incra.

No momento, Itamar segue maturando um projeto maior, no qual já estava contido Torto Arado, possivelmente uma trilogia sobre a relação entre o homem e a terra. Itamar Vieira Junior (foto: Nara Gentil) “Eu tenho um projeto de romance que alimento há cinco anos, tenho acumulado pesquisas sobre o tema e escrito num ritmo muito lento (por causa das demandas de divulgação). O que posso adiantar é que a história se passa no Recôncavo da Bahia, em terras da Igreja, e que se divide entre o campo e a cidade”.Dias literários Desde o começo de 2019, Itamar mora no bairro de Itapuã, com a mãe e um de seus quatro irmãos. Aliás, não por acaso, um dos pilares da narrativa em Torto Arado é a forte relação entre duas irmãs, Bibiana e Belonísia. Primogênito da prole, o escritor sempre foi o responsável pela condução dos menores, juntamente com seus pais. Sobre eles, exerceu uma influência tão forte e presente que todos decidiram seguir o mesmo caminho profissional e se tornaram geógrafos.

“Ele assumiu uma espécie de autoridade sobre os mais novos. Gostava de reproduzir conosco as orientações de nossos pais. Herdou, também, dessa posição, o cuidado”, conta Leandro Vieira, 31, um de seus irmãos. Divergência só em relação ao futebol. Quando todos se juntavam para assistir às partidas na antiga Fonte Nova, Itamar se distraía, contemplando a arquitetura dos prédios ao redor do estádio, em lugar de acompanhar os lances do jogo. “Nosso pai contava isso às gargalhadas”, diz Leandro.

Em 2018, quando soube que havia sido o segundo brasileiro a vencer o prestigiado Prêmio Leya, o escritor estava voltando ao hospital, onde acompanhava a internação do pai, com quem finalmente se sentia reconciliado. Ainda que por breve período, os dois vibraram juntos pelo reconhecimento internacional de Torto Arado. Para o velho Itamar, a premiação também significava muito. Afinal, foi ele quem deu de presente ao garoto, aos 11 anos, a primeira máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 82.

Foi nessa máquina, aos 16, que Itamar escreveu a primeira versão de seu romance. As oitenta páginas, porém, se perderam numa das muitas mudanças de casa, enquanto o Destino providenciava as peças que faltavam para que se tornasse um clássico. “Itamar lia muito na infância, mas nunca imaginei que se tornaria escritor. Pensava que era um passatempo, como o nosso era jogar futebol. Só no lançamento de Dias, em 2012, percebi que ele havia adentrado de vez o universo da escrita”, lembra Leandro. Manuela D´Ávila e Guilherme Weber postaram fotos com o livro (reprodução) A oração do carrasco Editado pela Caramurê, Dias foi o primeiro livro de Itamar, publicado quando ele tinhs 32 anos, após vencer o prêmio Arte e Cultura, promovido pelo Banco Capital. Antes de concorrer ao Leya, competindo com 450 originais inéditos enviados por autores de 13 países, ele lançaria o elogiado A Oração do Carrasco, que teve a edição (pela Mondrongo) viabilizada por um edital da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, e que figurou entre os finalistas do Jabuti 2018, na categoria contos.

O Jabuti, um dos prêmios literários mais cobiçados do país, viria apenas no ano passado, na categoria romance, para Torto Arado, que também seria premiado com o Oceanos. Editado pela Leya, em 2018, em Portugal, o livro só chegaria ao Brasil, pela Todavia, em 2019. No ano seguinte, ganharia versão em italiano, Aratro Ritorto, pela Tuga Edizioni. E é claro que o resto do mundo não ficaria indiferente. Segundo Itamar, os direitos já estão sendo negociados com editoras do México, Eslováquia e Bulgária.

Nada mal para quem considerava quase impossível sobreviver apenas como escritor. Na verdade, Itamar nunca pensou em ser outra coisa na vida. Mas, de origem humilde e ciente da necessidade de ter uma profissão menos insegura, decidiu cursar geografia na Ufba, fazer mestrado e doutorado, prestar concurso público. Tão disciplinado nas pesquisas quanto na literatura, tornou- se doutor em Estudos Étnicos e Africanos e foi aprovado no Incra em 2006 e nomeado para o Maranhão, onde conheceria nova família.

A pressão dos pais também contou nessa escolha. Desde a infância, o estudo dos quatro filhos era supervisionado de perto, e com rigor, e a escola sempre foi considerada o único caminho para alcançar uma vida melhor. “Nossa educação familiar era exigente e rígida. Horários definidos para as tarefas de casa, para as atividades da escola e para sair à rua ou jogar videogame. O boletim era a medida para avaliar a nossa capacidade na condição de estudantes”, conta Leandro Vieira.

Fio de corte Uma das melhores amigas do escritor, Conceição Coutinho Melo, 41, vem da época em que o menino baiano, acostumado a conviver intensamente com os pais e irmãos em Salvador, se viu de repente sozinho, exilado na capital maranhense. “Havia uma turma de novatos chegando no Incra, grande parte de outros estados. Ita vindo de Salvador e eu de Fortaleza. Nós formamos uma espécie de família e sempre que alguém adoecia, todos ajudavam. Foi um processo muito bonito”, lembra.

Ita para os amigos, Junior para os irmãos, o escritor iniciou a carreira como funcionário público atuando no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), iniciativa voltada à população camponesa. Conceição conta que o trabalho era exaustivo, mas nos fins de semana a diversão era certa. “Ele é muito engraçado, tem um humor inteligente. Quem o conhece superficialmente talvez tenha uma impressão diferente, de rapaz tímido e sério. O que não deixa de ser real também”.

Da turma de novatos do Incra no Maranhão, ao menos quatro amigos seguem fortemente ligados ao escritor. Em um grupo de mensagens, costumam conversar por horas todos os dias, religiosamente. “Criamos uma ligação de muito companheirismo e cumplicidade”, diz. Entre ele e Conceição, a afinidade foi ainda mais intensa, como ela conta: “Temos muitas coisas em comum, desde o fato de virmos de famílias que enfrentaram dificuldades financeiras até questões ideológicas, com posicionamentos mais fortes”.

Defeitos? Claro que ele os tem, como todo mundo. “É difícil falar dele, porque eu o admiro e amo profundamente. Sei de muitas qualidades e alguns defeitos, como toda pessoa possui, obviamente. Mas posso dizer que ele carrega essa dualidade: o leve e o profundo de mãos dadas”. Se a leveza se traduz em brincadeiras e risadas, e no cuidado com seus bichos e plantas, a profundidade se concentra no desejo de mudar o mundo. “E isso ele faz, com seus posicionamentos, mesmo que lhe acarrete consequências”.

Torto Arado Este é, segundo Conceição, um dos traços marcantes de Itamar. “Ele não mede esforços para defender o que considera justo, odeia injustiça, e é uma pessoa muito ética”, complementa. A portuguesa Maria do Rosário Pedreira, 62, editora da Leya, que o conheceu quando da premiação de Torto Arado, concorda e diz que a empatia entre eles foi imediata e se consolidou a partir do primeiro encontro em Lisboa. Os dois trabalharam juntos na edição do romance e se tornaram amigos.

“Não somente eu, mas todos na editora entendem que aquilo que parecia ser ele o é de fato: uma pessoa extraordinária do ponto de vista humano, extremamente grato a Portugal por este prêmio, que ele acha que lhe permitiu ser publicado e levado a sério no Brasil, discreto e sem vaidade, mas também sem papas na língua”, diz. Desde as primeiras entrevistas a veículos internacionais, o escritor nunca se negou a comentar a situação política do país. “Ele tem imensa coragem para por o dedo na ferida”.

Presente ao júri que premiou Torto Arado, a editora diz que os originais a prenderam imediatamente, desde a primeira página. “Nunca me passou pela cabeça que o seu autor estivesse ainda no início da carreira literária, pois seu livro era muito seguro e a ideia que eu tinha era de que se tratava de alguém experiente nas lides da escrita”, conta. Com a expertise de quem descobriu Valter Hugo Mãe, Maria do Rosário diz que intuiu estar diante do grande vencedor da edição daquele ano. Estava certa.

Bem antes, em Salvador, o escritor Franklin Carvalho, 52, faria a leitura de Torto Arado. Ele foi um dos poucos a quem o autor confiou seus inéditos. “Ele me enviou o livro para que eu desse uma opinião. Passamos uma tarde conversando”, conta. Para Carvalho — vencedor do São Paulo de Literatura 2017 e do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia 2019 —, a literatura de Itamar tem uma solidez que é própria dele. “Um ser humano íntegro em seus ideais, comportamento e dedicação às pessoas”.

Um homem da terra Este aspecto também é destacado por Marianna Teixeira Soares, 51, agente literária que cuida da carreira de Itamar, e de alguns dos autores contemporâneos de maior sucesso hoje no país. “Ele é um autor esplêndido, Torto Arado é um romance maravilhoso, que vem liderando a lista dos mais vendidos. Além da inegável qualidade literária, Itamar é um escritor muito receptivo, sempre disponível para os leitores. Ele é uma pessoa muito doce e absolutamente encantadora”, observa.

Para o poeta Alex Simões, 46, que o conhece há muitos anos, Itamar é incansável no cuidado com tudo que o rodeia, sejam animais, pessoas ou projetos. “Não é mera coincidência ele ser vegetariano (e excelente cozinheiro) e ter, como objetos-sujeitos de estudo, de trabalho e de texto, as comunidades quilombolas. Na arte, é esse escritor jovem cujo texto assombra pela maturidade na destreza com que lida com a linguagem, no modo como dá vida a personagens de realidades muito diferentes da sua”.

Ironia das ironias, Alex conta que o autor de Torto Arado sempre considerou a própria vida desinteressante, voltando toda a sua atenção ao próximo. Certamente, biógrafos brasileiros e estrangeiros pensam o contrário. Mas, se a fama deu uma sacudida na sua trajetória, não parece ter afetado sua personalidade. “Apesar de, agora, ele ser conhecido, laureado, continua o Ita de sempre. Vê todas as besteiras engraçadas que mando no direct do Instagram e segue preocupado com a família”, diz Conceição Coutinho. Edição italiana de Torto Arado É com a mãe e o irmão caçula que Itamar tem compartilhado o período de distanciamento social, desde o começo da pandemia, em março do ano passado. “Somente oito meses depois do nascimento de minha filha, Bela, ele pôde carregar a sobrinha no colo”, conta Leandro Vieira. Nesse cenário, ele diz, a cerimônia de anúncio do Jabuti foi revigorante para a família. “Misto de Oscar e Copa do Mundo”, brinca. Os lances e reviravoltas na carreira de Itamar Vieira Júnior, certamente, garantem a emoção.

Leia com exclusividade trecho inédito do novo romance de Itamar Vieira Junior

 "A primeira vez que ele perguntou sobre o seu pai você se sentiu vago no espaço, como se o tempo estivesse suspenso à sua volta. Neste instante vieram-lhe imagens, sons e cheiros que só você sabia que existiam. O cheiro velho da terra depois da breve chuva, e a chuva que evaporava sob o sol sem piedade; os sons e as cinzas surgidas do canavial queimado, cinzas que pareciam cair sobre o mundo como a chuva seca que não existe sob este sol lento e feroz como o fogo, nem mesmo às margens do rio com seu perfume doce e quente e que nunca cessa seu movimento. Tudo isso e mais um pouco retornava, menos o que esperava de seu pai. Então disse que ele havia morrido quando você ainda era muito criança. O pai era um jovem viúvo, e havia proposto um duelo a um concorrente, o noivo de uma mulher da aldeia, porque a desejava levar para casa. Não, não havia paixão, foi o que você repetiu de forma insistente. Aos homens da beira do Paraguaçu não foi concedida a graça da paixão. Ele queria levá-la porque talvez fosse a mais jovem, bem disposta e prendada mulher da aldeia. Porque a queria para cuidar dos seus seis filhos pequenos; a queria para cozinhar, lavar, passar, para ser o esteio da casa em ruína durante os anos que estavam por vir. Mas seu pai não teve sorte e foi surpreendido enquanto se afastava com uma garrucha antiga na mão, sem ter cumprido todos os passos, e recebeu um tiro pelas costas. O seu rival, mais jovem, precisava se mostrar homem e não estava disposto a perder sua conquista. À margem do Paraguaçu se disputava de tudo: de terra à mulher, de disposição das cercas aos animais e plantio. Seu pai tombou numa dessas disputas, longe dos olhos dos filhos. Desde então você recontava a si mesmo a história de um jeito todo seu. Naquele instante, sob o corpo do pai, talvez tivesse se formado uma considerável poça de sangue. E mais não disseram por não querer impressionar as crianças, como se isso fosse possível. Bastava olhar à volta para compreender que a violência era a alma da aldeia."