Jazz: canto do povo de um lugar

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 9 de setembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Há 60 anos o jazz atingia o seu Olimpo particular. Nunca tantas obras-primas foram lançadas ao mesmo tempo como em 1959. Álbuns revolucionários, que prenunciaram ou sedimentaram tendências e consolidaram em definitivo o gênero como manifestação maior da cultura humana. Cito aqui os fundamentais: Kind of Blue (Miles Davis), Time Out (Dave Brubeck), Moanin’ (Art Blakey), Mingus Ah Um (Charles Mingus) e The Shape of Jazz to Come (Ornette Coleman). Mas vamos ser justos: qualquer recorte temporal que se faça entre 1955 e 1964 provavelmente vai revelar estoques equivalentes de beleza suprema. Porque, nesse período (mas também antes e depois), o jazz floresceu como uma selva equatorial na era pré-colombiana.

Em 1959, como nas décadas anteriores, as manifestações pelos direitos civis engatinhavam e o racismo institucionalizado campeava, cindindo a sociedade americana entre anglo-saxões e os que carregavam na pele e na alma a linhagem de escravos expatriados da África. Esse contexto é fundamental para se compreender uma música concebida essencialmente por negros, sendo alguns deles os homens e mulheres mais talentosos e singulares do seu tempo. Daí o fato de o jazz ser, mais do que um gênero musical, um fenômeno político, comportamental e sobretudo social. Impossível dissociar, por exemplo, o sofrimento inato na voz de Billie Holiday ou a introspecção nos solos de Miles Davis do meio em que estavam inseridos.

Toda a dolorosa vida pregressa de Lady Day está presente na sua obra: basta ouvi-la cantando Strange Fruit, metáfora macabra para negros enforcados em árvores, das quais pendiam como frutas estranhas. Miles tinha muitos motivos para ser um cara durão. Certa vez, foi agredido por um policial branco ao sair para fumar no intervalo de um show, do qual era a grande estrela. Miles não aceitou o “circulando”, tão comum ainda hoje nas cidades brasileiras, e foi coberto de pancadas. Toda sua agressividade latente, que às vezes transbordava como um Vesúvio ensandecido, curiosamente produzia sonoridades quase etéreas. Obra maior de 1959 e também da história do jazz, Kind of Blue é assim. Até hoje me comove, me extasia, remexe em camadas sensoriais que desconheço.

Não deixa de ser curioso que o gênero nascido em guetos, tocado muitas vezes por ex-ladrões e ex-prostitutas sem formação musical, tenha se tornado a música clássica do século 20, por sua complexidade, refinamento e dificuldade de execução. Uma música que ouço todos os dias, e que redescubro a cada artista ou disco desenterrado. O fascínio de um solo quase evaporando de Lester Young. O dedilhado infinito de Oscar Peterson. A ascese espiritual convertida em fúria sonora de Coltrane. A força vital de Blue Mitchell, Lee Morgan, Kenny Dorham. A delicadeza impecável de Billie, Ella e Sarah. O lirismo virtuoso de Clifford Brown, que foi embora tão cedo. A alegria incontida na voz de Louis, que joga por terra qualquer melancolia. A loucura sagrada de Monk. A chama gélida de Miles. Todos eles negros. Todos eles deuses.

Paulo Sales é publicitário e escreve sobre humanidades toda segunda-feira