João Gilberto, duplamente infinito

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  • Da Redação

Publicado em 6 de julho de 2019 às 23:46

- Atualizado há um ano

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João Gilberto não morre. Se é (e é) verdade que cada som emitido para sempre se propaga. E mesmo se assim não fosse, naturalmente, com os sons dele seria. “Sou o que soo”, o cantor parecia nos dizer. Joãozinho de Juazeiro, filho de dona Patu e pai da bossa nova, elevou para sempre a importância da música popular no mundo inteiro e seu nome se inclui na mesma galeria de Machado de Assis, Aleijadinho e Pelé. Dele, de que tanto se disse, o que há mais para dizer? “Tanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada”. Ideal seria, em silêncio de oração, a gente ser capaz de fazer do Brasil, de fato, o país da bossa de João: melodia, harmonia e ritmo tratados aos mesmo tempo com rigor e descontração extremos. Revolução que brota do mais profundo amor pela tradição. Bim bom, só isso.   

Por falar em Brasil, certamente devemos a João Gilberto o fato de sermos o único país que ouve mais música local que estadunidense. E por isso, chamo mais de poesia que de acaso o fato de ele ter nascido a 10 de junho, dia da artilharia. Pois o fato é que João, doce como seja, tendo mesmo dito que uma canção nunca deve falar em “sangue, morte ou punhal”, é um artilheiro, um jagunço, guardião de nossos valores e do destino da língua portuguesa, espécie de Krishna quadrigueiro ou Riobaldo Tatarana que tem por armas “o amor, o sorriso e a flor”. Não por acaso ele encarnou a aparente contradição (ou “contradição sem conflitos”, como disse Walter Garcia) de ser ao mesmo tempo um clássico e um escândalo, um bamba de vanguarda, o mais nacional a contrapelo dos nacionalistas, etc. Considerado extravagante pelas plateias mal-educadas e por jornalistas ignorantes, quase ninguém percebeu que tudo o que o Joãozinho-de-uma-nota-só exigia era apenas a fórmula básica, o H²O da música: som e silêncio.

Este ano, eu que a cada ano faço minha dezena de São João Gilberto de 1º a 10 de junho, passei o aniversário dele ao lado de Caetano Veloso e Aderbal Duarte. Para mim foi um presente estar ao lado de dois exímios cultivadores (cada um a seu modo) da lição do grande artista. Cantamos-lhe parabéns. 88 anos: dois infinitos de cabeça pra cima. Assim João Gilberto passou para a eternidade neste sábado (6). Duplamente infinito. Dele nos disse um grande poeta paulistano: "Quaisquer que sejam as novas direções da nossa música nova, não nos esqueçamos da lição de João". Seu violão e sua voz seguem sendo os nossos lemes e os nossos lemas. Dele disse outro grande poeta, este carioca: "Eu sei que dentro da sua neurose, dentro da sua esquisitice, existe um lugar que ele rega diariamente com as lágrimas que chora por dentro. Um lugar que podemos chamar de Brasil, por exemplo". E, diante sua arte mínima, múltipla e incomum, de sua versão nuclear da graça do samba, poderíamos dizer de João Gilberto aquilo que outro João, poeta pernambucano, disse de um toureiro famoso: "que à tragédia deu número, / à vertigem, geometria / decimais à emoção / e ao susto, peso e medida".

Fato é que João Gilberto não morre. O “iougue”, o bruxo está lá, exigindo da gente a invenção do Brasil. Nunca seu silêncio foi tão ouvido. Meu filho se chama João por causa dele. Sua interpretação de "Retrato em Branco e Preto" em Montreux (1985) é a mais bonita que alguma canção já viveu. "Para mim, ele está no nível mais alto da música de câmara clássica, mas com uma paixão muito mais vívida", disse Chick Corea. Paixão vívida. E muito mais. A bossa nova é foda. Um dia pediram para o cantor mandar um recado ao Brasil. João Gilberto mandou mais: "Um beijo para o Brasil". Pois nada mais oportuno, nesse momento de tanto revolucionarismo careta e tanto tradicionalismo imoral, que o Brasil tome cada canção que sai de sua boca como um beijo. Felicidade sim! Cantar. E afinal também podemos tomar para o Gilberto aquelas palavras de Carlos Drummond  ao João Guimarães Rosa: “Ficamos sem saber o que era João. E se João existiu. De se pegar”.