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Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2021 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
Como se miséria pouca fosse bobagem e alertas de tempestade não fossem suficientes para inspirar preocupações, eis que surge sua excelência, um juiz. Com a autoridade suprema de um bacharel dedicado que logrou êxito num concurso público, vestido numa toga e investido na responsabilidade de fazer Justiça em nome de um povo, sua excelência nos impõe um NÃO problema. >
Nada agora é mais urgente e importante, do que a ameaça canetada pelo meritíssimo juiz, antes de entrar em gozo de férias, sobre mais de 500 anos de história. Sim, porque a decisão não afeta apenas o imóvel, mas também, e, principalmente, o que ele guarda. >
A emenda do juiz substituto, suspendendo o leilão e abrindo prazo de 60 dias para o Estado resolver onde colocar o acervo, não melhora o soneto do seu colega de toga. Mas não é mais do que um alívio imediato para a apreensão coletiva. Nada além disso. Mas devemos a ele - justiça se lhe faça, este respiro que não pode ser trégua, e sim preparação para o bom combate. >
Vamos conceder a sua excelência, o benefício da dúvida, e, botando a mão no fogo pelo douto senhor, concordemos com o mérito da sua decisão – sem ler a sentença. Claro! Para decidir condenar uma empresa (Bahiatursa) ao pagamento por um produto que não se comprovou nos autos ter sido entregue, com base num contrato que, comprovadamente, não existiu, um juiz precisa ter muita convicção. >
Só podemos mesmo supor serem projetos incríveis, os tais que deram materialidade ao objeto da ação que nos atormenta. Quem arquitetou isso por certo ficaria honrado em expor seu talento à sociedade baiana, dando-nos conhecimento de produto tão genial. E nós, baianos distraídos, que tanto festejamos Lina Bo Bardi, talvez devamos a esses expoentes da arquitetura, algum tipo de homenagem, dessas que as casas legislativas se especializaram em outorgar. Além, é claro, dos milhões amealháveis, se o tal leilão ocorrer. >
Mas, com toda vênia possível, permito-me humildemente questionar o meritíssimo juiz daqui de onde pode falar um jornalista. Questiono o que não se pode deixar de questionar: para garantir o direito alegado por uns poucos, é razoável determinar o despejo de um arquivo inscrito e nominado no Registro Nacional do Programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)? >
A desídia dos gestores da Bahiatursa em 2005, quando a Quinta dos Tanques foi por eles oferecida à penhora, não pode justificar a sequência quase mecânica de um rito que resulte no despejo do Apeb da casa que se supunha sua (nossa!), no ano seguinte à reforma paga por nós todos. >
Juízes não podem ignorar o que está para além dos seus gabinetes. Para garantir o direito de uns poucos, bem poucos, não é justo impor um problema desse tamanho para a sociedade baiana. >
Com toda gratidão ao juiz substituto por ter suspendido o leilão, em 60 dias sequer é possível trasladar corretamente aqueles acervos, ainda que houvesse, desde já, lugar preparado para recebê-los, e adequado para serem conservados e mantidos acessíveis em condições de salubridade para quem pesquisa. >
Por outro lado, se até nisso o excelentíssimo estiver certo, podemos estar diante de uma espetacular oportunidade de inovação no portentoso aparato judiciário. A prevalecer a ferro e fogo o entendimento de que basta o contido nos autos processuais, a tal letra fria, já não precisamos mais de gente togada para muita coisa. >
Sim! Um bom algorítimo decidiria, talvez, em favor dos geniais arquitetos e mandaria realizar o leilão sem dó, sem piedade e com celeridade! Vejam: só tem vantagens: e-juiz não tira férias, não recebe auxílio-moradia, não tem filhos para fazerem jus a auxílio-educação e não ganha nem salário mínimo, muito menos o teto do funcionalismo, acrescido de generosos penduricalhos. >
E, vantagem final: se der ruim, pode ser sumariamente desligado, em vez de aposentado ganhando os mesmos vencimentos da ativa. >
Mas ainda assim, mesmo custando caro, escaldado com o VAR da CBF, eu ainda prefiro gente de toga. Gente. Pessoas dotadas ao menos de uma pálida noção do conceito de pertencimento. Humanos com o raciocínio técnico-jurídico conectado ao coração que dispensa olhos para enxergar vidas para além dos processos. No caso em tela, milhões de vidas passadas em mais de cinco séculos de história.>
*Ernesto Marques é presidente da Associação Bahiana de Imprensa>