Lágrimas e pedidos: veja como foi o trajeto do Senhor do Bonfim até a Colina Sagrada

Nesse ano, fiéis conheceram lugares que passam batido durante a tradicional festa

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 14 de janeiro de 2021 às 16:38

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

O coronavírus vem sacudindo tudo e mudando, sem pedir licença, rotina, hábitos e tradições. A Festa do Senhor do Bonfim de 2021 não conseguiu escapar dessa. Mas nesta quinta-feira (14), fiéis baianos, mesmo de um jeito diferente, não deixaram de prestar suas homenagens e fazer suas orações. Foi dia de agradecer pela vida e pedir para que ela vença a luta contra a pandemia da covid-19.

O lema da campanha feita pela Prefeitura de Salvador carregava um apelo: ‘Quem tem fé fica em casa’. Mas não teve jeito. As forças policiais até tentaram, junto com agentes da Transalvador, segurar a onda dos devotos, mas o soteropolitano é teimoso e muitas pessoas foram às ruas para reverenciar Nosso Senhor do Bonfim, também conhecido como Oxalá nas religiões de matriz africana. 

Ao invés da procissão que ia da Igreja da Conceição da Praia até a Colina Sagrada, o caminho da fé este ano foi diferente. Quem acompanhou, teve a oportunidade de conhecer um pouco mais o trajeto, que passou por locais importantes da história da cidade que, muitas vezes, passam despercebidos na agitação da festa.

A imagem de Jesus Cristo crucificado saiu da Igreja Nossa Senhora da Vitória pouco depois das 8h. Por lá, as pessoas aguardavam a saída do cortejo em carro aberto. Muitos decidiram acompanhar de carro, moto, bicicleta ou até mesmo a pé ou correndo.

Teve até torcedor do Bahia vestido dos pés à cabeça de azul, vermelho e branco, acrescentando as fitinhas do Senhor do Bonfim para dar o toque final. Ele ia correndo e gritando: "Esse ano não desce não, é primeira divisão!". Será que vai conseguir alcançar essa graça? Mas nem todo mundo estava com essa disposição toda e muitos acabaram ficando pelo caminho. 

Esse foi o caso da psicóloga Carla Carvalho, de 46 anos, que estava na Vitória e disse que ia acompanhar até onde aguentasse. “Estou desde cedo aqui agradecendo por ter conseguido passar por 2020, um ano tão difícil. Mas a gente conseguiu, foram muitos aprendizados e agora precisamos estar prontos para 2021”. 

O primeiro ponto marcante foi a Igreja de Nossa Senhora da Graça, que reuniu alguns poucos fiéis. No templo religioso, estão os restos mortais de Catarina Paraguaçu, a índia que se casou com o náufrago português Diogo Álvares Correia, o Caramuru. Por lá, um badalar de sinos para saudar a imagem. Depois, o cortejo seguiu pelo Corredor da Vitória. E o que não faltou pelo caminho foi emoção.

A imagem ia passando e os braços automaticamente se abriam, as mãos aplaudiam e as lágrimas desciam. Lágrimas que colocavam para fora o que não cabia mais no peito. A sensação de chegar ao início de 2021 e ver as coisas tão diferentes nesse dia tão tradicional foi de angústia. 2020 foi duro, solitário, sofrido. O coração parecia querer gritar para o mundo que este ano tem que ser melhor. E vai, com fé no Nosso Senhor do Bonfim, vai! Foto: Arisson Marinho/CORREIO Na Avenida Sete de Setembro, o movimento de todos os dias parou para ver a imagem passar. O vai e vem de comerciantes e clientes deu uma trégua, como se em sinal de respeito. O comércio podia esperar. A partir daí, quem estava nas ruas ia parando. Quem estava trabalhando pediu para o relógio correr menos depressa. Até os operários de um prédio em construção trocaram as ferramentas pelos celulares para registrar o momento especial. 

Aqueles que preferiram não descer para o asfalto, ficaram de suas janelas. Nas sacadas enfeitadas, os fiéis acenavam com panos brancos nas mãos, exaltando a paz e a pureza. Quando passou pela Igreja Nossa Senhora da Piedade, o Senhor do Bonfim foi recebido por mais um badalar de sinos. 

No Terreiro de Jesus, no Pelourinho a primeira parada. O local tinha muitas pessoas à espera da imagem, que foi até o ponto de encontro entre a Catedral Basílica de Salvador, a Igreja da Ordem Terceira de São Domingos Gusmão e a Igreja de São Pedro dos Clérigos. Alí foi a área recebida pelos jesuítas em 1550. Devido à presença dos padres da Companhia de Jesus, o largo em frente passou a ser conhecido como "Terreiro de Jesus".

Saindo do Centro Histórico, seguiu pela Rua Carlos Gomes e Avenida Contorno. Logo à frente, o encontro do Senhor do Bonfim com Nossa Senhora da Conceição da Praia, cuja imagem o aguardava na porta da Igreja que a abriga. Não só a imagem, como uma multidão que levava o branco nas vestimentas que, este ano, incluíam a máscara de proteção facial. 

O sincretismo também é a marca principal da homenagem à Nossa Senhora da Conceição da Praia, Padroeira Excelsa e Única do Estado da Bahia. Adorada pelos católicos e reverenciada pelos adeptos do candomblé, no sincretismo religioso a santa é Oxum, orixá das águas doces.

De lá, em tempos normais, começaria o cortejo das baianas, que andam da Igreja até o Alto do Bonfim, para a lavagem das escadarias. Mas, depois da segunda pausa, o carro seguiu viagem, passando pelo Elevador Lacerda, podendo reforçar o simbolismo da celebração.

A construção, aberta em 1873, conecta Cidade Alta e Cidade Baixa. Parafraseando a banda BaianaSystem, diga aí: em que cidade você se encaixa? Não importa em qual delas estejam suas raízes, a Festa do Bonfim é o espaço de todas. Se tem uma palavra que traduz os festejos, essa palavra é ‘mistura’. 

No Comércio, o cortejo passou pelo Mercado Modelo, na Praça Cairu. O local é importante atração turística e marca as boas-vindas que os baianos dão à quem quer que chegue à nossa terra e tenha bom coração. Logo depois, na Avenida Jequitaia, o Mercado do Ouro, construído no fim do século XIX. Ainda nessa avenida, o Museu du Ritmo, o Trapiche Barnabé, além do plano inclinado que liga a Cidade Baixa ao Santo Antônio Além do Carmo.

Já no bairro da Calçada, a Feira de São Joaquim (uma das feiras populares mais icônicas da cidade) estava à esquerda e, à direita, a Igreja dos Órfãos de São Joaquim. Mais à frente, no Largo da Calçada, a imagem passou pela estação de trem que liga a Cidade Baixa ao Subúrbio Ferroviário de Salvador e, alguns metros depois, no Largo de Roma, pelas Obras Sociais de Irmã Dulce.

Aí foi a última parada. Inaugurado em 1993, um ano após a morte da baiana, o Memorial Irmã Dulce é uma exposição permanente sobre o legado de amor e caridade da religiosa. A agora Santa Dulce dos Pobres não poderia deixar de encontrar com Nosso Senhor do Bonfim.

E o momento mais esperado finalmente chega. A imagem do padroeiro do coração dos baianos vai se aproximando da Igreja do Bonfim. Nos pés da ladeira, uma verdadeira multidão aguarda, mas um cerco com grades foi montado para impedir a subida à Sagrada Colina. O percurso foi encerrado, mas não foi possível chegar até o tradicional destino final.  

Para quem vai à festa há mais de 30 anos, o baque foi grande. “Eu nunca pensei em ver isso aqui desse jeito. A Igreja vazia, sem a gente poder chegar perto. Mas sei que é necessário. Não é o que a gente gosta, nem o que a gente esperava, mas é o que o momento pede”, disse a fiel Maria Luíza, de 61 anos, que desta vez foi da Barra até o Bonfim de barco. 

Mesmo com as restrições, chegar aos pés da Colina já é motivo de muita emoção. O banho de ervas vai ficar para depois, o cheirinho de alfazema e arruda que tomava conta do ambiente, vai ter que esperar o próximo ano. Não vai ser dessa vez a subida de joelhos e o ato de amarrar a fitinha colorida na grade da Igreja. Tudo diferente? Não, a fé continua a mesma. A fé e a esperança de tempos melhores. Viva Senhor do Bonfim!

*Com orientação da subeditora Monique Lôbo