Livro reúne dez contos sobre personagens marginais

Prostitutas, michês, mendingos e travestis povoam as histórias do escritor João Carlos Rodrigues

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  • Da Redação

Publicado em 24 de julho de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Uma tese: a marginalidade romântica que imperou na Lapa entre os anos 30 e 60 do século passado poderia ser considerada uma marginalidade “pessoa física”. Os malandros eram indivíduos, até com uma certa pureza, e os golpes dados serviam muito mais à subsistência imediata do que qualquer outra coisa. Eram pequenos expedientes – inteligentes e criativos, muitas vezes se aproveitando da “esperteza” da vítima – e que pela quase ingenuidade podiam ser repetidos dezenas de vezes com os mais deferentes tipos de incautos. A violência se restringia a socos e navalhadas.

Esses malandros – Madame Satã talvez tenha sido o exemplo mais bem acabado – foram sendo perseguidos pela polícia (não sem motivo), malvistos pelos militares da ditadura (tão adoradores da ordem e dos bons costumes), encarcerados e, até, dizimados (ou nas celas ou pela destruição do seu habitat natural, aquela Lapa que deixou de existir).

Os que sobreviveram nas prisões, na transição dos anos 60 para os 70, tiveram contato com outro tipo de preso, o político. Desse último, o malandro tomou conhecimento dos métodos, da disciplina, da capacidade de organização, do sentido de hierarquia. Morria o malandro “pessoa física” e nascia o malandro “pessoa jurídica” – o bandido que deixava de agir solitariamente e com objetivos restritos e passava a atuar em grandes golpes e de maneira coletiva, dando origem aos comandos, bandos, falanges e milícias.

Quem primeiro flagrou esse fenômeno foi Aguinaldo Silva, não de maneira explícita, mas cercando e demonstrando a transição em reportagens policiais, em programas televisivos como Bandidos da Falange e Plantão de Polícia e, principalmente, em livros como Memórias da Guerra e Lábios que Beijei, suas lembranças do tempo em que viveu os estertores da Lapa romântica, de 1964 a 1972. 

No livro, Aguinaldo – pernambucano de Carpina, nascido em 1943, iniciado no jornalismo em seu estado-natal e chegando ao Rio com livros publicados e se considerando uma espécie de Jean Genet do agreste – conta histórias de personagens como Débora, a bicha que voa (na verdade, Antonio Gildásio do Amaral, um homem forte e ágil que ficou famoso pelos saltos que dava entre telhados e altas janelas dos sobrados), Twist, a velha prostituta que agonizava numa fétida cama enquanto o casario do entorno é destruído, e Alemão, codinome de Edmundo Bukovicz, o bofe de olhos azuis por quem o autor (no livro, a Escritora) se apaixona, vive um tórrido romance entre golpes, surras e fugas – e por quem é quase assassinado.

Aguinaldo deixa o final de Lábios que Beijei quase em aberto, com algumas dúvidas sobre o destino de personagens tão fantasiosos quanto fantásticos e dando ideia de uma possível sequência até hoje nunca confirmada.

Quem revisita a ideia, como farsa, é João Carlos Rodrigues, carioca, 69 anos, jornalista, biógrafo (de João do Rio e de Johnny Alf), roteirista (de Rio Babilônia, ao lado de Neville D'Almeida e Ezequiel Neves), ensaísta (com o livro O Negro Brasileiro e o Cinema) e autor de Criaturas que o Mundo Esqueceu, original e surpreendente reunião de dez contos sobre malandros, travestis, prostitutas, mendigos, veados, garotos de programa, michês e tantos outros personagens marginais e periféricos.

Os cenários, agora, são mais amplos – bairros da Zona Sul do Rio, São Paulo, cidades interioranas – e alguns personagens conhecidos. Desfilam os já citados Débora e a Escritora, além de outros de carne em osso, como o policial que gostava de transar com travestis (clara referência a Mariel Mariscot) em meio a uma fauna de figuras como Gigi Bombom, Zizinho, Mário Lúcio, Frei André, Shirley Casanova e Robson. Nos dez contos – coesos e harmônicos, embora Temporada de Caça, a meu ver, claramente se destaque – os personagens se cruzam, ora como protagonistas, ora como coadjuvantes. 

Suas histórias são ao mesmo tempo semelhantes e tão diferentes entre si. Independentes e promíscuas. São ricas também as referências à cultura pop, de Audrey Hepburn a Johnny Alf, de Alcione a Carlos Zéfiro, de Charles Mingus a Albino Pinheiro, e tantos outros que, embora não identificados, são facilmente reconhecíveis.

João Carlos Rodrigues, ex-colega de Aguinaldo Silva na redação do jornal Lampião, a mais conhecida e importante publicação gay do país, surpreende ao revelar suas criaturas esquecidas pelo mundo. E apesar de estar escrevendo ficção deixa claro que tudo que está ali é real – e, por isso mesmo, ainda mais assustador

*Márcio Pinheiro é jornalista

Capa de Criaturas que o Mundo esqueceu