London London e o fantasma de Samuel Beckett

Esteja onde estiver sempre finjo ser cidadão local; não suporto a ideia de me sentir estranho em terra estranha

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  • Da Redação

Publicado em 16 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Em latim: ‘Romae et romanorum’. Em livre tradução para o português: esteja onde estiver sempre finjo ser cidadão local. Não suporto a ideia de me sentir estranho em terra estranha. Procuro andar no trote da gente nativa. Não fotografo monumentos. Não abro mapas para localizar ruas – como se fazia ontem – ou fuço o google maps no smartfone – como se faz hoje.  Por conta desse não-querer-ser-visto-como-estrangeiro já caí em esparrelas – eis o espírito da coisa – gosto de me aventurar, de me deixar perder e de me achar. 

Obtive sucesso nessas ações miméticas. A ponto de ser abordado por visitantes e moradores do próprio lugar desorientados sobre rotas e caminhos. Em Mucugê, adorável cidade baiana, fazia minha primeira caminhada de reconhecimento pelos becos e vielas do lugar, quando carro parou ao meu lado, e o motorista perguntou: - Onde fica a casa de ‘seu’ Nozinho? Fiquei em pânico: como eu poderia não saber onde ficava a casa de ‘seu’ Nozinho? Pensei em mentir, em dizer ‘dobre-à-direita-depois-à-esquerda-é-uma-casa-azul-de-janelas-amarelas, mas me contive. Compungido, admiti: não morava na cidade, e pedi desculpas sinceras. 

Estive em Londres apenas por duas temporadas, ambas intensas. Mas lá eu me sinto confortável, leve e solto, e circulo com desenvoltura, sem destino, me perdendo e me achando. Gostava de frequentar o labiríntico Hyde Park, caminhar a esmo, e parar num lugar qualquer, e ler – era o caso – Henry James. Certo dia, ao me desviar do foco da leitura – ‘Retrato de Uma Senhora –, avistei em banco próximo homem sisudo de certa envergadura, rosto totêmico, cabelos lisos e brancos puxados para trás; simples, mas elegante no traje. Pareceu-me familiar, era como se eu já o tivesse visto antes. 

Observei-o por instantes: desolado, parecia esperar alguém que demorava a chegar – e voltei a ler. De repente, voz grave me interrompeu: - Where is the exit? Fechei o livro, atarantado – como aquele homem que eu pensava ser londrino típico não sabia sair do Hyde Park? Levantei-me, e tentei ajuda-lo. Mas eu, brasileiríssimo, à altura dessa ocorrência inusitada também não sabia onde estava a saída. De soslaio olhei para a esquerda e vi placa onde estava escrito: Exit. Acompanhei o homem até lá, ele me agradeceu, e eu perguntei num inglês gaguejante: - Pensei que o senhor era daqui. De onde o senhor é? Ele respondeu: - Eu sou de Dublin. Já ouviu falar? Fica na Irlanda.

O homem se foi. Voltei ao meu banco. Não consegui me concentrar na leitura. Achei absurdo eu não ter perguntado o nome do cara. Começou a cair chuva miúda, típica de verões londrinos. Era julho. Caí fora. A caminho de pequeno hotel nas imediações, imerso em reflexões, o nome Samuel ecoou na minha cabeça, seguido do sobrenome Beckett. [Bingo. Eu havia encontrado o genial dramaturgo e escritor Samuel Beckett em pessoa.  Mas lembrei: ele morrera em 1989 e estávamos em 1995. E daí? So what? Continuo querendo crer: aquele homem era mesmo Samuel Beckett – morto, mas vivo].