Luíse Bello: os monstros são os outros

O estupro, a violência doméstica e o feminicídio são a ponta visível de um iceberg de violência contra a mulher que é constituído no nosso dia a dia

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  • Da Redação

Publicado em 28 de maio de 2016 às 15:47

- Atualizado há um ano

É muito curioso, enquanto alguém que trabalha para uma ONG de empoderamento feminino, observar as reações diante do estupro coletivo que aconteceu no Rio de Janeiro. Vejo pessoas que normalmente se isentam quando o assunto é violência contra a mulher absolutamente indignadas, e com razão: como não se comover diante de tamanha barbárie? Mais de trinta homens contra uma adolescente? É o tipo de situação que não tem lugar em uma sociedade evoluída e civilizada como o Brasil se pretende ser.

Mas toda essa indignação do cidadão comum não deveria depender apenas do surgimento de um crime tão sórdido. O estupro, a violência doméstica e o feminicídio são a ponta visível de um iceberg de violência contra a mulher que é constituído no nosso dia a dia. O ser humano tem uma tendência de se isentar de influências externas, como se por si só jamais fosse capaz de cometer crimes ou injustiças, mas o fato é que nossa socialização acontece sob o pressuposto de que as mulheres estão no lado inferior do desequilíbrio de poder que existe entre os gêneros. E identificar e combater essa mentalidade são desafios que nem todos estão dispostos a encarar.

Uma justificativa em particular se destaca, especialmente entre os representantes – para parafrasear o indigesto presidente em exercício – do “mundo masculino”, a de que nem todo homem é assim. Mas, ao tratarmos esses estupradores como monstros, como homens de uma casta diferente, damos a eles uma espécie de passe livre quando, na verdade, eles não passam de homens comuns criados em uma sociedade que legitima a violação do corpo feminino e que, em determinado momento, sentiram-se no direito de lançar mão dessa violência.

Não por serem como máquinas loucas de desejo e luxúria incontroláveis, mas porque encontram enraizadas em si razões que abrandam sua atitude e lhe garantem impunidade, a saber: a culpabilização da vítima (“Ela se colocou nessa situação, sabia dos riscos”); anuência sobre a libido e a violência masculinas (“Homem é assim, não pode provocar!”); e a certeza de uma provável ausência de consequências, já que crimes de estupro estão entre os mais subnotificados e raramente levam à prisão dos acusados.

É a esse mesmo tipo de diferenciação de pessoas a que estão sujeitas as mulheres sob a lógica do machismo. As que são para casar e as que não devem ser levadas a sério – sendo que nada disso faz qualquer diferença quando o assunto é estupro. No caso do Rio de Janeiro, surgem alguns para dizer que a vida pregressa da vítima é questionável (o velho “Nada justifica esse crime, mas...”), colocando a jovem no segundo grupo: ainda que não “merecesse” o estupro, de alguma forma ela teria alguma responsabilidade sobre ele.

Nesse cenário, temos homens que são “monstros”, mulheres “que não são santas” e ninguém no seu círculo de convivência que admitiria se encaixar em qualquer um dos grupos, resultando em uma sociedade que lava as mãos e assepticamente se afasta desse crime hediondo.

Entretanto, o estupro está perto de nós - e não me refiro somente às muitas estatísticas que apontam como na maioria das vezes ele ocorre dentro de casa e entre parentes, mas também a todas as circunstâncias em que ele nem mesmo assim é reconhecido: quando o marido força a esposa, quando a mulher está desacordada, quando ela diz não, mas ele acha que é tarde demais para voltar atrás... Quando não há consentimento, não é sexo. E talvez entre os mais comovidos com o caso estejam alguns criminosos relutantes em tomar para si a pecha de monstros. Monstros são os 33. Será?

Luíse Bello é publicitária e gerente de conteúdo e comunidade da ONG Think Olga.