Mãe de bicho e os usos dessa palavra

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 13 de maio de 2019 às 13:06

- Atualizado há um ano

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Primeiro, o que me incomoda é ver animal maltratado e não cheio de dengos e mordomias. Segundo, que não acho que cães adotados estão roubando famílias de crianças abandonadas porque cada um(a) sabe a qualidade do amor que tem pra dar. Terceiro, máximo respeito a qualquer grau de parentesco que qualquer pessoa venha a desenvolver com qualquer ser ou objeto. Não é da minha conta e eu respeito, inclusive, aqueles casamentos entre homens orientais e bonecas infláveis (ainda que eu lamente tamanha solidão). Cada um na sua, a vida continua. Bom é deixar os outros em paz.

Nessa semana, no entanto, o retorno na polêmica "mães de pet" nas redes sociais me fez pensar um negócio que quero dividir com vocês. Mais uma vez, vi mulheres disputando, definindo, reivindicando o título de "mãe". Até "mãe de planta" teve com gente a favor e contra a legitimidade da maternagem de vegetais. Olha, eu dou bastante risada em meus passeios pela web e saio sempre com a sensação de que estamos ficando um pouquinho loucos(as) e bastante ridículos(as), mas o foco aqui é outro: o que existe nessa palavra que tanta mulher quer pra si?

Eu nunca fui mãe de bicho e por mais que escapasse um "vem cá, filhinho", para algum animal de estimação, eu sabia que ser mãe seria outro papo. Uma onda que eu sempre quis - e muito - pra mim. Veio e eu descobri que é tsunami, que reformata o ser e estar aqui. Eu não tô falando só de gestar e parir, mas de quando o desejo diz "esse filho é meu" e tudo, dentro da gente, se abre para guardar, zelar, cuidar, amar aquele ser. Uma experiência tão importante que até quem não quis viver, muitas vezes, precisa substituir. Um negócio tão sério que, acho, querer e não poder experienciar precisa de longas e profundas elaborações.

Toda mulher tem que ser mãe? Obviamente que não. Deixar de ser mãe faz alguma mulher incompleta? De maneira alguma. Não necessariamente, digo. Mas esse é um desejo com o qual não dá pra brincar. Negá-lo ou fazer de conta que "nem doeu" o fato de não poder ter tido filhos, isso sim, deve ser uma dor monumental. Acho que mesmo as mulheres que nunca desejaram ter filhos precisam trabalhar essa palavra. Esvaziá-la de tudo o que, socialmente, carrega. É tudo bem não ser mãe de nada, de ninguém. E, nesse sentido de liberdade, EU jamais me denominaria "mãe" de bicho, nem de samambaia, nem de árvore.

Para MIM, isso seria uma maternidade de consolação, uma brincadeirinha de ser algo que eu não quis/pude ser. Ora, se eu não quis - e estou bem com essa decisão - pra que diabos fingir? E se eu não pudesse (nem parir nem adotar), seria bom trabalhar esse vazio até que conseguisse estar livre do que eu mesma esperava de mim. Porque dos outros é mais fácil se livrar, mas é muita pauleira lidar com o que fica na gente. EU teria uma "mãe" de braços estendidos, dentro de mim. E ela precisaria de atenção, de um destino, um fechamento, uma elaboração.

Sim, estou falando do uso da palavra "mãe" e não de como as pessoas lidam com seus animais de estimação. Não importa se dormem abraçados, se passeiam de sling. Não é disso que eu falo. Mas da palavra. E observem o quanto é infinitamente mais comum ouvir por aí "mãe de pet" do que "pai". Porque homem que não tem filho continua confortável. Mas de nós se espera qualquer tipo (mesmo que seja de bicho) de maternagem. A gente come esse papo, cumpre esse roteiro, ainda, por mais livres e descoladas. E ainda brigamos pelo título, porque há quem acredite que cada mulher que se diz "mãe" de bicho (ou de planta, sei lá) desqualifica os esforços da real maternidade.

Se não houvesse a hierarquia, não se disputava a palavra. O que se precisa entender é que mulheres que se tornam mães não são melhores do que as que não foram nem serão. São experiências diversas, diferentes oportunidades, rotas pessoais. E que nós, em mais um aspecto, assim como nossos bichinhos, estamos correndo ao redor dos nossos próprios rabos. Por que mães se irritam com o "mau uso" da palavra? Por que tutoras de animais se exaltam ao defender esse tipo de "maternidade"? Percebem que não é apenas um tema periférico e levinho de bate-papo?