MAM em risco: tombado, museu erguido há 400 anos é palco de show e polêmica

Preocupa vibração nas paredes e descarte de lixo no mar

Publicado em 15 de dezembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação/Ipac

O MAM lotou. Tinha gente na frente do palco, do lado, atrás, perto da igreja e até onde nem dava para ver direito as performances de Saulo e Jau. Na falta de um lugar mais apropriado, tinha público até debruçado nos arcos da Avenida Contorno. O sucesso do show do último domingo no Solar do Unhão - gerido pelo governo do estado - ultrapassou os limites da construção histórica  e ganhou as redes com uma pergunta: ‘O MAM tem estrutura para isso?’.

O CORREIO ouviu especialistas ao longo da semana e as respostas vieram das mais diversas formas. Mas, numa coisa, todo mundo concorda: é preciso analisar os possíveis impactos antes de autorizar  eventos de grande porte num espaço erguido há quatro séculos e que é patrimônio histórico.

As reações provocaram até mudanças de planos. A banda Psirico, que tinha escolhido o MAM para os ensaios de verão, mudou de endereço. Ao CORREIO, Márcio Victor disse que “existem espaços que são tratados como tesouro” e que “respeita a logística do MAM”. Neste final de semana, o museu abriga um festival com expectativa de receber mais de 10 mil pessoas.

A polêmica da semana tinha uma razão: o Solar do Unhão, que foi adaptado para abrigar o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM) em 1962, há 57 anos, carece de cuidados, como limite de pessoas, potência de som e logística. A construção é do século 17 e todo o conjunto arquitetônico foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1943. 

O show do final de semana passada reuniu um público maior do que o MAM costuma ver no Jam no MAM. “Eu não fui, não, mas meia Bahia tava lá”, resume uma advogada que queria ter se juntado à multidão. Um estudante, que não quis se identificar, contou que o show foi excelente, mas que ficou clara a falta de estrutura. O público pulava ao lado de um solar e uma igreja do século 17, e de equipamentos como antigo guincho, característico do lugar. Iphan informou que não houve dano ao patrimônio, mas shows não tinham autorização federal para acontecer (Foto: Divulgação/Ipac) 21 shows Só este ano, segundo o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), que administra o MAM, foram realizados 21 shows e eventos no museu - 12 deles foram o Jam no MAM, que já acontece há 20 anos. Segundo a pasta, todos “são precedidos de um processo administrativo de autorização de uso onerosa, onde são anexados documentos necessários à formalização” (veja mais ao lado).

O problema é que os últimos eventos, segundo o Iphan, não tinham autorização. De acordo com o órgão, o Ipac deveria ter comunicado a intenção de realizar um show lá e pedido autorização, o que não ocorreu.“Por se tratar de bem tombado pela autarquia, a promoção de eventos ou intervenções de qualquer natureza no local só podem ser executadas após autorização prévia do Instituto”, diz nota do Iphan.Segundo o órgão - que ficou sabendo da natureza dos eventos após uma denúncia por e-mail - não foram constatados danos ao patrimônio. Mesmo assim, por conta da irregularidade, o Ipac foi notificado.

A exigência de que o Iphan autorize a realização desses eventos existe por conta da necessidade de analisar data de montagem e realização do evento, layout e projeto das estruturas, expectativa de público e riscos ao patrimônio.

Arquitetura civil Antes de abrigar o MAM, o Solar do Unhão passou por uma intervenção da arquiteta Lina Bo Bardi. Séculos antes, já tinha sido complexo agro-industrial, fábrica de rapé e trapiche.“Você tem ali um dos monumentos mais importantes da arquitetura civil brasileira. Uma coisa é colocar uma música tipo jazz, tranquila. Mas, quando você trabalha com sons em altos decibéis, com certeza vai ter impacto”, diz o arquiteto Neilton Dórea, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).Para o também arquiteto Paulo Ormindo, que foi aluno de Lina Bo Bardi, o problema não está na natureza dos shows. “Tem que ver a quantidade de pessoas que pode atrair, as instalações sanitárias, de bebedouro, que possam atender a isso”, declara. Conjunto arquitetônio do MAM, que inclui solar, capela e obras, é do século 17 e foi tombado pelo Iphan (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) Vibração Neilton Dórea chama a atenção para a vibração provocada pelo som. “Se tem um som muito alto, ele vibra, vai ter impacto estrutural. É claro que não vai acontecer de hoje para amanhã. Mas, com certeza vai ter algum impacto”, explica.

Ou seja, não é que um show vai ‘derrubar’ o MAM que, aliás, foi construído no pé da falha geológica de Salvador. Mas, dependendo da vibração, ele pode gerar ou propagar rachaduras que já existiam. É o que explica o engenheiro metalúrgico Adilson Rodrigues da Costa, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

“A intensidade do fenômeno depende, obviamente, dos níveis da energia das vibrações devidas à propagação do som ambiente e da movimentação do público”, afirma. Ele acrescenta que é fundamental monitorar as vibrações. 

Patrimônio natural Os impactos no patrimônio histórico não são a única preocupação. O geólogo Ricardo Fraga, professor do Instituto de Geociências da Ufba, lembra que o MAM-BA fica às margens da Baía de Todos os Santos, que é considerada uma Área de Proteção Ambiental (APA) pelo governo do estado desde 1999, há 20 anos.“Uma ação como essa deveria ser pactuada com o conselho gestor da APA, levando em conta o zoneamento. Exige que o governo faça um estudo de impacto da vizinhança e esse impacto não deveria nem levar em conta somente os humanos”, explica Fraga.Segundo ele, a vibração provocada pelo som afeta a fauna marinha e ainda há os problemas decorrentes do descarte de resíduos. “No âmbito do patrimônio natural, aquela aglomeração não seria positiva, porque você tem pessoas atirando plástico, garrafa ali na praia”, aponta. Sujeira ainda era recolhida na manhã seguinte ao show no museu (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Precedentes Esta não é a primeira vez que eventos em áreas tombadas geram polêmica. Em 2007, o Ministério Público Federal (MPF) pediu o cancelamento de uma rave que aconteceria dentro do Forte de São Marcelo, que também fica na Baía de Todos os Santos.

Na ocasião, o MPF argumentando que os eventos que estavam sendo realizados lá vinham se mostrando equivocados e incompatíveis com a finalidade cultural e educacional do forte. A aparelhagem de som teria uma potência superior a 30 mil watts.

De acordo com a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), que fiscaliza Poluição Sonora em Salvador, existe um limite de 100 decibéis para shows na cidade, conforme prevê a Lei do Silêncio.

O Ministério Público Estadual (MP-BA) informou não há representações sobre shows no MAM-BA, mas que a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente (Ceama), promotora Cristina Seixas Graça, irá averiguar a situação.

Como preservar? Não é apenas em Salvador que há preocupação com o impacto nas construções históricas. Em Ouro Preto (MG), único lugar no Brasil em que a cidade inteira é considerada patrimônio mundial pela Unesco, uma série de medidas foi tomada para reduzir o impacto nas construções dos séculos 17 e 18. Elas vão desde a proibição na circulação de veículos pesados na área tombada até a limitação de foliões nos blocos carnavalescos.

De acordo com o secretário municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, Zaqueu Astoni, as medidas foram tomadas como forma de resguardar a segurança das pessoas e preservar o patrimônio.“Essa preservação é fundamental. É importante aliar a segurança da população e a preservação do patrimônio, porque um não existe sem o outro. O patrimônio cultural da nossa cidade é o grande atrativo para o Carnaval”, explica Astoni.Na cidade que foi a primeira capital de Minas Gerais, qualquer festa só acontece depois de passar por licenciamento e autorização da Secretaria de Cultura e Patrimônio, do Corpo de Bombeiros e do Iphan.

“Já tivemos problemas com a circulação de veículos pesados e já tivemos no passado problemas no Carnaval, que foi objeto de uma ação judicial e hoje ele é celebrado através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público”, afirma. Desde 2004, Carnaval de Ouro Preto acontece por meio de acordo judicial; número de foliões por bloco foi reduzido (Foto: Divulgação/Prefeitura de Ouro Preto) Na prática, foram feitas restrições no horário da festa e no número de foliões por blocos. Antes de 2004, eles tinham até 5 mil foliões; hoje, após um estudo, são permitidos, no máximo, 2 mil. Quem ultrapassa esse número não deixa a concentração. “A preocupação era a vibração de 5 mil pessoas pulando dentro de uma rua do século 18”, lembra o secretário.

O que diz o Ipac? - Sobre a liberação dos eventos: 

"Todos os eventos realizados no MAM são precedidos de um processo administrativo de AUTORIZAÇÃO DE USO ONEROSA, onde são anexados documentos: projeto, plantas de situação, ofício de solicitação, relação dos equipamentos, potência, documentos dos responsáveis, ART (Anotação de responsabilidade técnica), alvarás etc. É cobrado um valor de pauta. O IPAC possui regulamentação para tais eventos. O compromisso do IPAC com os recursos captados é que eles sejam revertidos para a manutenção, conservação e dinamização do MAM". 

- Sobre o manejo dos resíduos: "Os resíduos sólidos, bem como todos os equipamentos utilizados no evento devem ser retirados em até 24 horas após a sua realização e são de responsabilidade dos organizadores. Quaisquer equipamentos não podem interferir ou prejudicar a visibilidade de qualquer estrutura tombada. Obras e construções são preservadas".

- Preservação "Foi lançada, no dia 16 de novembro deste ano, a Portaria 119 que consiste em tratar de condições para a realização das atividades e manifestações em áreas e bens tombados pelo IPAC. A intenção é proteger os patrimônios de qualquer intervenção que venha a trazer algum dano. Além disso, o MAM passa por preservação e manutenção contínuas e foi recentemente reformado, com recursos do Estado de R$ 15 milhões". 

- Preservação "O número de público é fixado através de laudo assinado por engenheiro, bem como é exigido Atestado de Segurança do Corpo de Bombeiros. Os decibéis - medição e fiscalização -, ficam a cargo da SUCOM, e são amparados por Alvará do órgão municipal".