O MAM lotou. Tinha gente na frente do palco, do lado, atrás, perto da igreja e até onde nem dava para ver direito as performances de Saulo e Jau. Na falta de um lugar mais apropriado, tinha público até debruçado nos arcos da Avenida Contorno. O sucesso do show do último domingo no Solar do Unhão - gerido pelo governo do estado - ultrapassou os limites da construção histórica e ganhou as redes com uma pergunta: ‘O MAM tem estrutura para isso?’.
O CORREIO ouviu especialistas ao longo da semana e as respostas vieram das mais diversas formas. Mas, numa coisa, todo mundo concorda: é preciso analisar os possíveis impactos antes de autorizar eventos de grande porte num espaço erguido há quatro séculos e que é patrimônio histórico.
As reações provocaram até mudanças de planos. A banda Psirico, que tinha escolhido o MAM para os ensaios de verão, mudou de endereço. Ao CORREIO, Márcio Victor disse que “existem espaços que são tratados como tesouro” e que “respeita a logística do MAM”. Neste final de semana, o museu abriga um festival com expectativa de receber mais de 10 mil pessoas.
A polêmica da semana tinha uma razão: o Solar do Unhão, que foi adaptado para abrigar o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM) em 1962, há 57 anos, carece de cuidados, como limite de pessoas, potência de som e logística. A construção é do século 17 e todo o conjunto arquitetônico foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1943.
O show do final de semana passada reuniu um público maior do que o MAM costuma ver no Jam no MAM. “Eu não fui, não, mas meia Bahia tava lá”, resume uma advogada que queria ter se juntado à multidão. Um estudante, que não quis se identificar, contou que o show foi excelente, mas que ficou clara a falta de estrutura. O público pulava ao lado de um solar e uma igreja do século 17, e de equipamentos como antigo guincho, característico do lugar.
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Iphan informou que não houve dano ao patrimônio, mas shows não tinham autorização federal para acontecer (Foto: Divulgação/Ipac) |
21 shows
Só este ano, segundo o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), que administra o MAM, foram realizados 21 shows e eventos no museu - 12 deles foram o Jam no MAM, que já acontece há 20 anos. Segundo a pasta, todos “são precedidos de um processo administrativo de autorização de uso onerosa, onde são anexados documentos necessários à formalização” (veja mais ao lado).
O problema é que os últimos eventos, segundo o Iphan, não tinham autorização. De acordo com o órgão, o Ipac deveria ter comunicado a intenção de realizar um show lá e pedido autorização, o que não ocorreu.
“Por se tratar de bem tombado pela autarquia, a promoção de eventos ou intervenções de qualquer natureza no local só podem ser executadas após autorização prévia do Instituto”, diz nota do Iphan.
Segundo o órgão - que ficou sabendo da natureza dos eventos após uma denúncia por e-mail - não foram constatados danos ao patrimônio. Mesmo assim, por conta da irregularidade, o Ipac foi notificado.
A exigência de que o Iphan autorize a realização desses eventos existe por conta da necessidade de analisar data de montagem e realização do evento, layout e projeto das estruturas, expectativa de público e riscos ao patrimônio.
Arquitetura civil
Antes de abrigar o MAM, o Solar do Unhão passou por uma intervenção da arquiteta Lina Bo Bardi. Séculos antes, já tinha sido complexo agro-industrial, fábrica de rapé e trapiche.
“Você tem ali um dos monumentos mais importantes da arquitetura civil brasileira. Uma coisa é colocar uma música tipo jazz, tranquila. Mas, quando você trabalha com sons em altos decibéis, com certeza vai ter impacto”, diz o arquiteto Neilton Dórea, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Para o também arquiteto Paulo Ormindo, que foi aluno de Lina Bo Bardi, o problema não está na natureza dos shows. “Tem que ver a quantidade de pessoas que pode atrair, as instalações sanitárias, de bebedouro, que possam atender a isso”, declara.
Conjunto arquitetônio do MAM, que inclui solar, capela e obras, é do século 17 e foi tombado pelo Iphan (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) |
Vibração
Neilton Dórea chama a atenção para a vibração provocada pelo som. “Se tem um som muito alto, ele vibra, vai ter impacto estrutural. É claro que não vai acontecer de hoje para amanhã. Mas, com certeza vai ter algum impacto”, explica.
Ou seja, não é que um show vai ‘derrubar’ o MAM que, aliás, foi construído no pé da falha geológica de Salvador. Mas, dependendo da vibração, ele pode gerar ou propagar rachaduras que já existiam. É o que explica o engenheiro metalúrgico Adilson Rodrigues da Costa, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
“A intensidade do fenômeno depende, obviamente, dos níveis da energia das vibrações devidas à propagação do som ambiente e da movimentação do público”, afirma. Ele acrescenta que é fundamental monitorar as vibrações.
Patrimônio natural
Os impactos no patrimônio histórico não são a única preocupação. O geólogo Ricardo Fraga, professor do Instituto de Geociências da Ufba, lembra que o MAM-BA fica às margens da Baía de Todos os Santos, que é considerada uma Área de Proteção Ambiental (APA) pelo governo do estado desde 1999, há 20 anos.
“Uma ação como essa deveria ser pactuada com o conselho gestor da APA, levando em conta o zoneamento. Exige que o governo faça um estudo de impacto da vizinhança e esse impacto não deveria nem levar em conta somente os humanos”, explica Fraga.
Segundo ele, a vibração provocada pelo som afeta a fauna marinha e ainda há os problemas decorrentes do descarte de resíduos. “No âmbito do patrimônio natural, aquela aglomeração não seria positiva, porque você tem pessoas atirando plástico, garrafa ali na praia”, aponta.
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Sujeira ainda era recolhida na manhã seguinte ao show no museu (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Precedentes
Esta não é a primeira vez que eventos em áreas tombadas geram polêmica. Em 2007, o Ministério Público Federal (MPF) pediu o cancelamento de uma rave que aconteceria dentro do Forte de São Marcelo, que também fica na Baía de Todos os Santos.
Na ocasião, o MPF argumentando que os eventos que estavam sendo realizados lá vinham se mostrando equivocados e incompatíveis com a finalidade cultural e educacional do forte. A aparelhagem de som teria uma potência superior a 30 mil watts.
De acordo com a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), que fiscaliza Poluição Sonora em Salvador, existe um limite de 100 decibéis para shows na cidade, conforme prevê a Lei do Silêncio.
O Ministério Público Estadual (MP-BA) informou não há representações sobre shows no MAM-BA, mas que a coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente (Ceama), promotora Cristina Seixas Graça, irá averiguar a situação.
Como preservar?
Não é apenas em Salvador que há preocupação com o impacto nas construções históricas. Em Ouro Preto (MG), único lugar no Brasil em que a cidade inteira é considerada patrimônio mundial pela Unesco, uma série de medidas foi tomada para reduzir o impacto nas construções dos séculos 17 e 18. Elas vão desde a proibição na circulação de veículos pesados na área tombada até a limitação de foliões nos blocos carnavalescos.
De acordo com o secretário municipal de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, Zaqueu Astoni, as medidas foram tomadas como forma de resguardar a segurança das pessoas e preservar o patrimônio.
“Essa preservação é fundamental. É importante aliar a segurança da população e a preservação do patrimônio, porque um não existe sem o outro. O patrimônio cultural da nossa cidade é o grande atrativo para o Carnaval”, explica Astoni.
Na cidade que foi a primeira capital de Minas Gerais, qualquer festa só acontece depois de passar por licenciamento e autorização da Secretaria de Cultura e Patrimônio, do Corpo de Bombeiros e do Iphan.
“Já tivemos problemas com a circulação de veículos pesados e já tivemos no passado problemas no Carnaval, que foi objeto de uma ação judicial e hoje ele é celebrado através de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público”, afirma.
Desde 2004, Carnaval de Ouro Preto acontece por meio de acordo judicial; número de foliões por bloco foi reduzido (Foto: Divulgação/Prefeitura de Ouro Preto) |
Na prática, foram feitas restrições no horário da festa e no número de foliões por blocos. Antes de 2004, eles tinham até 5 mil foliões; hoje, após um estudo, são permitidos, no máximo, 2 mil. Quem ultrapassa esse número não deixa a concentração. “A preocupação era a vibração de 5 mil pessoas pulando dentro de uma rua do século 18”, lembra o secretário.
O que diz o Ipac?
- Sobre a liberação dos eventos:
"Todos os eventos realizados no MAM são precedidos de um processo administrativo de AUTORIZAÇÃO DE USO ONEROSA, onde são anexados documentos: projeto, plantas de situação, ofício de solicitação, relação dos equipamentos, potência, documentos dos responsáveis, ART (Anotação de responsabilidade técnica), alvarás etc. É cobrado um valor de pauta. O IPAC possui regulamentação para tais eventos. O compromisso do IPAC com os recursos captados é que eles sejam revertidos para a manutenção, conservação e dinamização do MAM".
- Sobre o manejo dos resíduos:
"Os resíduos sólidos, bem como todos os equipamentos utilizados no evento devem ser retirados em até 24 horas após a sua realização e são de responsabilidade dos organizadores. Quaisquer equipamentos não podem interferir ou prejudicar a visibilidade de qualquer estrutura tombada. Obras e construções são preservadas".
- Preservação
"Foi lançada, no dia 16 de novembro deste ano, a Portaria 119 que consiste em tratar de condições para a realização das atividades e manifestações em áreas e bens tombados pelo IPAC. A intenção é proteger os patrimônios de qualquer intervenção que venha a trazer algum dano. Além disso, o MAM passa por preservação e manutenção contínuas e foi recentemente reformado, com recursos do Estado de R$ 15 milhões".
- Preservação
"O número de público é fixado através de laudo assinado por engenheiro, bem como é exigido Atestado de Segurança do Corpo de Bombeiros. Os decibéis - medição e fiscalização -, ficam a cargo da SUCOM, e são amparados por Alvará do órgão municipal".